Groddeck: Pai da
Psicossomática
Trechos da Carta 31, do “ O Livro d’Isso” (1923)
Continuando sua narrativa sobre os efeitos da Psicanálise em
sua vida e em seu trabalho:
(...) Comecei a perceber que via coisas que não conseguia
ver antes. Travei conhecimento com os símbolos. (...) Uma embriaguez tomou
conta de mim, como nunca havia sentido antes e nunca voltei a sentir. O que
primeiro aprendi sobre a psicanálise foi o símbolo, e ele não me abandonou
mais.
(...) A força com que essa incursão no mundo dos símbolos me
transformou deve ter sido inaudita, pois desde as primeiras semanas de meu
aprendizado ela já me levava a procurar símbolos nas transformações orgânicas
da aparência humana produzidas pelo que se convencionou chamar de doença
orgânica física. O fato de a vida psíquica ser uma constante simbolização era
tão evidente aos meus olhos que eu afastava com impaciência a inoportuna massa
de idéias e sentimentos novos – pelo menos no que me dizia respeito – para me
lançar com uma pressa frenética na pista do efeito produzido pela revelação dos
símbolos sobre os órgãos doentes. E para mim esse feito era algo mágico.
(...)
A vaidade me impediu durante muito tempo de me interessar
pela psicanálise científica. Mais tarde, tentei reparar esse erro; espero que o
tenha conseguido, apesar das enraizadas ervas daninhas que ficaram em meu
pensamento e em meu tratamento psicanalítico. Mas esta obstinação em não querer
aprender teve suas vantagens. Em minhas apalpadelas cegas, livres do peso do
conhecimento, dei por acaso com a idéia de que além do inconsciente do
pensamento cerebral existem inconscientes análogos em outros órgãos, células,
tecidos, etc., e que, graças à união íntima entre esses inconscientes e o
organismo, obtêm-se uma influência curativa sobre cada um deles e ao se
analisar o inconsciente cerebral.
Não pense que me sinto à vontade escrevendo isto. Tenho a
impressão de que estas frases não resistirão nem mesmo a sua crítica afetuosa,
sem falar no exame sério dos especialistas. Como me é cada vez mais fácil
afirmar do que provar, mais uma vez vou recorrer à afirmação e direi: não há
doenças do organismo, físicas ou psíquicas, capazes de resistir à influência da
análise. O fato de, num certo caso, proceder-se através da psicanálise, da
cirurgia, no plano físico, pela dietética ou pelos medicamentos, é apenas uma
questão de oportunidade. Não há domínio da medicina em que a descoberta de
Freud não tenha sua utilidade.
(...)
Para quem, como eu, vê na doença uma manifestação de vida do
organismo, a doença não é mais uma inimiga. (...)
Desde que constato que a doença é uma criação do paciente,
ela se torna para mim a mesma coisa que seu modo de andar, sua maneira de
falar, o jogo fisionômico de seu rosto, seus gestos com as mãos, o desenho que
faz, a casa que constrói, o negócio que conclui ou o curso de suas idéias: um
símbolo significativo dos poderes que o dominam. (...) a doença não é mais uma
anomalia, mas algo determinado pela natureza mesma desse paciente . (...)
Tentarei descobrir porque e com que objetivo seu Isso (...) recorre à doença e
o que pretende exprimir com isso. Tratarei de me informar a respeito junto a
ele, junto ao Isso, sobre os motivos que o levaram a usar esse procedimento,
tão desagradável para ele quanto para mim. Conversarei com ele e depois verei o
que fazer.
(...)
A doença não provém do exterior, o próprio ser humano a
produz; o homem só se serve do mundo exterior como instrumento para ficar
doente, escolhendo em seu inesgotável arsenal de acessórios, ora a espiroqueta
da sífilis, ora uma casca de banana, depois uma bala de fuzil ou um resfriado
para proporcionar a si mesmo uma dor. Faz isso sempre com a intenção de sentir
prazer, pois, em sua qualidade de ser humano, faz parte de sua natureza sentir
prazer com o sofrimento; porque em sua qualidade de ser humano, está em sua
natureza sentir-se culpado e querer afastar essa sensação de culpa através da
autopunição; porque quer evitar só Deus sabe que incômodo. Na maior parte do
tempo, ele não tem consciência alguma dessas singularidades; para falar a
verdade, tudo isso é decidido e realizado nas profundezas do Isso, aonde não
temos acesso; mas entre as insondáveis camadas do Isso e nosso bom senso, há
camadas do inconsciente que o consciente pode alcançar e que Freud assinala
como tendo capacidade de tornar-se conscientes; e nelas pode-se descobrir todo
tipo de coisas gentis. O mais curioso é que quando se fuça nisso, não é raro
que de repente surja aquilo que chamamos de cura. Sem que compreendamos coisa
alguma do modo pelo qual a cura se produz, fortuitamente, sem que participemos
do processo, por nada deste mundo, nunca me cansarei de repetir isso.
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