sexta-feira, 1 de agosto de 2014

As Quatro Fases do Perdão (por Clarissa Estés)


A Prisão da Raiva Antiga
Se e quando a raiva se transforma numa represa para o pensamento e a ação criativa, ela precisa ser abrandada ou modificada. Para quem passou bastante tempo elaborando algum trauma, quer ele tenha sido provocado pela crueldade, negligência, falta de respeito, falta de responsabilidade, arrogância ou ignorância de alguém, quer por obra do destino, um dia chega a hora de perdoar a fim de liberar a psique para que ela volte a um estado normal de calma e paz.
Quando a mulher enfrenta dificuldades para se livrar da raiva ou da fúria, muitas vezes é porque ela está usando a raiva para ganhar forças. Embora a princípio essa possa ter sido uma decisão sábia, com o tempo ela precisa ter cuidado, pois a raiva constante é um fogo que queima sua própria energia vital. Encontrar-se nesse estado é como voar pela vida com o “pé na tábua”; como tentar levar uma vida equilibrada com o pé no acelerador até o fundo. O ímpeto da fúria não deve ser considerado um substituto da vida cheia de paixão. Não é a vida na sua melhor forma. Trata-se de uma defesa cuja manutenção é muito cara, depois de passada a necessidade da sua proteção. Após algum tempo, ela arde incessantemente, polui nossas ideias com sua fumaça negra e prejudica outras formas de visão e de percepção.
Não vou, porém, lhe dizer a mentira deslavada de que você tem condições de eliminar toda a sua fúria hoje ou na semana que vem, e que estará livre dela para sempre. A angústia e o tormento de tempos passados costumam surgir na psique numa frequência cíclica. Embora um expurgo profundo elimine a maior parte da dor e da fúria, nunca se consegue varrer completamente todo o resíduo. Ele deveria, no entanto, deixar cinzas bem leves, não um fogo voraz. Por isso, a limpeza da fúria residual precisa se tornar um ritual de higiene periódica, um ritual que nos libera, pois carregar a raiva antiga além do ponto de sua utilidade equivale a carregar uma ansiedade constante, mesmo que inconsciente.
Às vezes as pessoas se confundem e pensam que estar presa a uma raiva ultrapassada significa queixas e enfurecimentos, acessos de raiva e de atirar coisas. Na maioria dos casos, não é assim que funciona. Estar presa significa estar cansada o tempo todo, ter uma grossa camada de cinismo, destruir a esperança, frustrar o novo, o promissor. Significa ter medo de perder antes de abrir a boca. Significa chegar ao ponto de ebulição por dentro, deixando transparecer ou não. Significa amargos silêncios defensivos. Significa sentir-se desamparada. Existe, porém, uma saída, e é através do perdão.
“Ora, através do perdão?” você dirá num tom de repúdio. Qualquer coisa menos isso? No fundo, você sabe que um dia tudo se resumirá a isso. Pode ser que isso só chegue no seu leito de morte, mas chegará. Pense no seguinte: muitas pessoas têm dificuldades com o perdão porque lhes ensinaram que ele é um ato único a ser concluído de uma vez. Isso não é correto. O perdão tem muitas camadas, muitas estações. Na nossa cultura existe a ideia de que o perdão é absoluto. Tudo ou nada. Também nos ensinaram que perdoar significa fechar os olhos, agir como se algo não tivesse ocorrido. Isso também não é verdade.
A mulher que conseguiu atingir 95% de perdão de alguém ou de algum acontecimento trágico e danoso está praticamente qualificada para a beatificação, se não para a santidade. Se ela sentir uns 75% de perdão e 25% de “não sei se vou um dia conseguir perdoar totalmente, e nem sei se quero isso”, estará mais próxima do normal. No entanto, 60% de perdão acompanhados de 40% de “não sei, não tenho certeza e ainda estou pensando nisso”, já são uma atitude decididamente satisfatória. Um nível de perdão de 50% ou menos pode ser considerado como esforço em andamento. Menos de 10%? Ou você está apenas começando, ou ainda não está se esforçando.
Seja como for, quando tiver passado um pouco da metade do caminho, o resto virá com o tempo, geralmente em pequenos aumentos graduais. O aspecto mais importante do perdão consiste em começar e persistir. A conclusão do processo é trabalho para toda a vida. Você dispõe do resto de sua vida para trabalhar nos percentuais residuais. Na realidade, se pudéssemos entender tudo, tudo poderia ser perdoado. Para a maioria das pessoas, porém, é preciso muito tempo no banho alquímico para chegar a esse ponto. E está certo. Nós dispomos da cura e, por isso, temos a paciência para acompanhar o processo.
Algumas pessoas, graças ao seu temperamento inato, têm maior facilidade para perdoar do que outras. Para alguns, trata-se de um dom; para a maioria, trata-se de uma técnica a ser aprendida. A sensibilidade e a vitalidade essencial parecem afetar a capacidade de dar pouca importância às coisas. A sensibilidade e a vitalidade essencial parecem afetar a capacidade de dar pouca importância às coisas. A sensibilidade e a vitalidade intensa nem sempre permitem que injustiças sejam ignoradas com facilidade. O fato de você não perdoar facilmente não quer dizer que você seja má. Você também não é santa só por perdoar facilmente. Cada coisa a seu tempo.
Para uma cura real, porém, precisamos dizer a nossa verdade, e não só a nossa dor e nosso lamento, mas também o mal que foi causado, a raiva e revolta e o desejo de autopunição ou de vingança que foi evocado em nós. A velha curandeira da psique compreende a natureza humana com todas as suas fraquezas e concede o perdão com base no relato da verdade nua e crua. Ela não dá apenas uma segunda chance. Na maior parte das vezes ela dá muitas chances.
Examinemos os quatro níveis de perdão que venho usando no meu trabalho com pessoas traumatizadas ao longo dos anos. Cada nível tem algumas camadas. Pode-se lidar com eles em qualquer ordem e pelo tempo que se deseje, mas a seguir eles estão relacionados na ordem que sugiro a minhas clientes.

Os Quatro Estágios do Perdão
1.       Deixar passar- deixar a questão em paz
2.       Controlar-se – renunciar à punição
3.       Esquecer – afastar da memória, recusar-se a repisar
4.       Perdoar – o abandono da dívida

DEIXAR PASSAR
Para se começar a perdoar, é bom deixar passar algum tempo. Ou seja, é bom deixar de pensar provisoriamente na pessoa ou no acontecimento. Não se trata de deixar algo por fazer, mas assemelha-se a tirar umas férias do assunto. Isso ajuda a evitar que fiquemos exaustas, permite que nos fortaleçamos por outros meios, que tenhamos outras alegrias na vida.
Este estágio é um bom treino para o abandono definitivo que mais adiante advirá do perdão. Deixe a situação, a recordação, o assunto, tantas vezes quantas for necessário. A ideia não é a de fechar os olhos, mas a de adquirir agilidade e força para se desligar da questão. Deixar passar envolve voltar a tecer, a escrever, ir até o mar, aprender a amar algo que a fortaleça e deixar que o tema saia do primeiro plano por algum tempo. Isso é bom e é medicinal. As questões de danos passados irão atormentar a mulher muito menos se ela garantir à psique ferida que lhe aplicará bálsamos medicinais agora e que mais tarde tratará do assunto de quem provocou tal ferida.

CONTROLAR-SE
A segunda fase é a do controle, especificamente no sentido de abster-se de punir; de não pensar no fato nem reagir a ele seja com termos grandes, seja em termos pequenos. É de extrema utilidade a prática desse tipo de refreamento, pois ele aglutina a questão num único ponto, em vez de permitir que ela se espalhe por toda a parte. Essa atitude concentra a atenção para a hora em que a pessoa se dirigir aos próximos passos. Ela não quer dizer que a pessoa deva ficar cega, entorpecida ou que perca sua vigilância protetora. Ela pretende conferir um prazo à situação para ver como isso ajuda.
Controlar-se significa ter paciência, resistir, canalizar a emoção. Esses são medicamentos poderosos. Faça tanto quanto puder. Esse é um regime de purificação. Você não precisa fazer tudo; você pode escolher um aspecto, como o da paciência, e praticá-lo. Você pode se abster de palavras, de resmungos punitivos, de agir de modo hostil, ressentido. Ao evitar punições desnecessárias, você estará reforçando a integridade da alma e da ação. Controlar-se é praticar a generosidade, permitindo, assim, que a grande natureza compassiva participe de questões que anteriormente geravam emoções que iam desde a ínfima irritação até a fúria.

ESQUECER
Esquecer significa afastar da lembrança, recursar-se a repisar um assunto – em outras palavras, deixar de lado, soltar, especialmente da memória. Esquecer não quer dizer entorpecer o cérebro. O esquecimento consciente consiste em deixar de lado o acontecimento, não insistir para que ele permaneça no primeiro plano, mas permitir que ele seja relegado ao plano de fundo ou mesmo que saia do palco.
Praticamos o esquecimento quando nos recusamos a invocar o material inflamável, quando nos recusamos a mergulhar em recordações. Esquecer é uma atividade, não uma atividade passiva. Significa não trazer certos materiais até a superfície, nem revirá-los constantemente, nem se irritar com pensamentos, imagens ou emoções repetitivas. O esquecimento consciente significa a determinação de abandonar a prática obsessiva, de ultrapassar a situação e perde-la de vista, sem olhar para trás, vivendo, portanto, numa nova paisagem, criando vida e experiências novas em que pensar no lugar das antigas. Esse tipo de esquecimento não apaga a memória; ele simplesmente enterra as emoções que cercavam a memória.

PERDOAR
Existem muitos meios e proporções com os quais se perdoa uma pessoa, uma comunidade, uma nação por uma ofensa. É importante lembrar que um perdão “final” não é uma capitulação. É uma decisão consciente de deixar de abrigar ressentimento, o que inclui o perdão da ofensa e a desistência da determinação de retaliar. É você quem decide quando perdoar e o ritual a ser usado para assinalar esse evento. É você quem resolve qual é a dúvida que você agora afirma não precisar mais ser paga.
Algumas pessoas optam pelo perdão total, liberando a pessoa de qualquer tipo de reparação para sempre. Outras preferem interromper a reparação ao meio, abandonando a dívida, alegando que o que está feito está feito e que a compensação já é suficiente. Outro tipo de perdão consiste em isentar a pessoa sem que ela tenha feito qualquer reparação emocional ou de outra natureza.
Para certas pessoas, finalizar o perdão significa considerar o outro com indulgência, e isso é mais fácil quando as ofensas são relativamente leves. Uma das formas mais profundas de perdão está em dar ajuda compassiva ao ofensor por um ou outro meio. Isso não quer dizer que você deva enfiar a cabeça no ninho da cobra, mas, sim, ser sensível a partir de uma postura de compaixão, segurança e preparo.
O perdão é onde vão culminar toda a abstenção, o controle e o esquecimento. Não significa abdicar da própria proteção, mas da própria frieza. Uma forma profunda de perdão consiste em deixar de excluir o outro, o que significa deixar de mantê-lo a distância, de ignorá-lo, de agir com frieza, condescendência e falsidade. É melhor para a psique da alma restringir ao máximo o tempo de exposição às pessoas que são difíceis para você do que agir como um robô insensível.
O perdão é um ato de criação. Você pode escolher entre muitas formas de proceder. Você pode perdoar por enquanto, perdoar até que, perdoar até a próxima vez, perdoar mas não dar outra chance – começa tudo de novo se acontecer outro incidente. Você pode dar só mais uma chance, dar chances só se... Você pode perdoar uma ofensa em parte, pela metade ou totalmente. Você pode imaginar um perdão abrangente. Você decide.
Como a mulher sabe que perdoou? Você passa a sentir tristeza a respeito da circunstância, em vez de raiva. Você passa a sentir pena da pessoa em vez de irritação. Você passa a não se lembrar de mais nada a dizer a respeito daquilo tudo. Você compreende o sofrimento que provocou a ofensa. Você prefere se manter fora daquele meio. Você não espera por nada. Você não quer nada. Não há no seu tornozelo nenhuma armadilha de laço que se estende desde lá longe até aqui. Você está livre para ir e vir. Pode ser que tudo não tenha acabado em “viveram felizes para sempre”, mas sem a menor dúvida existe de hoje em diante um novo “Era uma vez” à sua espera.

Clarissa P. Estés (Mulheres que Correm com os Lobos)