O Homem Sinistro nos
Sonhos das Mulheres
(Clarissa P. Estés - Mulheres que Correm com os Lobos –
Capítulo 2: A Tocaia ao Intruso: O Princípio da Iniciação, p.89 a 93)
O predador natural da psique não
se encontra apenas nos contos de fadas, mas também nos sonhos. Existe um sonho
iniciático universal entre as mulheres. Ele é tão comum que é digno de nota o
fato de uma mulher ter chegado aos vinte e cinco anos sem tê-lo tido. O sonho
geralmente faz com que as mulheres acordem sobressaltadas, se debatendo e
ansiosas.
Eis o padrão do sonho. Quem sonha
está sozinha, há um ou dois homens rondando. Assustada, Ela disca o número de
emergência para pedir ajuda. De repente, ela percebe que o ladrão está dentro
de casa com ela... perto dela... talvez ela até sinta a respiração dele...
talvez ele até a esteja tocando... e ela não consegue ligar o telefone de
emergência. Ela acorda de repente, com a respiração ruidosa, o coração batendo
como um tambor descompassado.
O sonho com o homem sinistro tem
um forte aspecto físico. Ele muitas vezes é acompanhado de suores, movimentos
violentos, respiração difícil, aceleração dos batimentos cardíacos e às vezes
de gritos e gemidos de medo. Poderíamos dizer que o criador do sonho desistiu
de enviar mensagens sutis à sonhadora e agora manda imagens que abalam o
sistema neurológico e o sistema nervoso autônomo da sonhadora, comunicando,
assim, a urgência da questão.
O(s) antagonista(s) nesse sonho
com o homem sinistro são geralmente, nas palavras das próprias mulheres, “terroristas,
estupradores, bandidos, nazistas de campos de concentração, saqueadores,
assassinos, criminosos, homens desagradáveis, pervertidos, ladrões”. Existem
diversos níveis para a interpretação de um sonho desse tipo, dependendo das circunstâncias
da vida e dos dramas interiores que envolvem quem sonha.
Muitas vezes, por exemplo, esse
tipo de sonho é um indicador confiável de que a consciência de uma mulher, como
no caso de uma mulher muito jovem, está começando a perceber a existência do
predador psíquico inato. Em outros casos, o sonho é um arauto: a mulher que
sonha acabou de descobrir, ou está a ponto de descobrir e de começar a liberar,
uma função cativa e esquecida da sua psique. Ainda sob outras circunstâncias, o
sonho trata de uma situação cada vez mais intolerável na cultura que cerca a
vida pessoal de quem sonha, situação que ela precisa combater ou da qual
precisa fugir.
Em primeiro lugar, vamos
compreender as idéias subjetivas contidas neste tema em sua aplicação à vida
pessoal e interior de quem sonha. O sonho do homem sinistro esclarece à mulher
a situação difícil que enfrenta. O sonho fala de uma atitude cruel para consigo
mesma, encarnada pelo bandido no sonho. Como a esposa do Barba-Azul, se a
mulher conseguir respondê-la com honestidade, ela poderá se libertar. Então, os
agressores, os que espreitam e os predadores da psique exercerão pressão muito
menor sobre ela. Eles serão relegados a uma amada distante do inconsciente. Lá,
ela poderá lidar com eles com cuidado, em vez de no meio de uma crise.
O homem sinistro nos sonhos de
mulheres aparece quando é iminente uma iniciação – uma mudança psíquica de um
nível de conhecimento e de comportamento para outro nível mais maduro e mais
cheio de energia. Esse sonho ocorre àquela que ainda será iniciada, bem como
àquelas que já são veteranas de diversos ritos de passagem, pois sempre existe
uma iniciação a mais. Não importa a idade atingida pela mulher, não importa
quantos anos se passem, ela tem outras idades, outros estágios e outras “primeiras
vezes” à sua espera. É nisso que se resume a iniciação: ela cria uma abertura
através da qual a pessoa se prepara para passar de modo a alcançar um novo modo
de ser e de conhecer.
Os sonhos são portais, entradas,
preparações e ensaios para o próximo passo na consciência da mulher, para o sai
seguinte no seu processo de individuação. Portanto, uma mulher poderia sonhar
com o predador quando suas circunstâncias psíquicas estão excessivamente
inertes ou complacentes. Poderíamos dizer que o sonho ocorre para provocar uma
tempestade na psique para que algum trabalho vigoroso possa ser realizado. Além
disso, o sonho dessa natureza afirma que a vida da mulher precisa mudar, que a
mulher que sonha ficou enredada em algum hiato ou em algum estado inercial
relacionado a alguma escolha difícil, que ela reluta em dar o passo seguinte,
concluir o percurso seguinte, que ela está evitando arrancar sua própria força
das mãos do predador, que ela não está acostumada a ser/agir/lutar a todo
vapor, sem reservas.
Ainda mais, os sonhos com o homem
sinistro são também campainhas de alarme recomendando que prestemos atenção a
algo que se desencaminhou radicalmente no mundo exterior, na vida pessoa ou na
cultura coletiva. A psicologia tradicional apresenta, por total omissão, uma
tendência a segregar a psique humana do relacionamento tas etiologias culturais
do mal-estar e do desassossego, bem como a apartar a psique das políticas e
procedimentos que modelam as vidas interior e exterior dos seres humanos – como
se aquele mundo exterior não fosse tão surrealista, não fosse tão carregado de
símbolos, não tivesse tanto impacto e influência sobre a alma de cada um quanto
o tumulto interior.
Quando o mundo exterior se
intromete na vida espiritual básica de um indivíduo ou de muitos, os sonhos com
o homem sinistro surgem em grande número. (...)
Em termos gerais, haveria a
impressão de que, para as sonhadoras ingênuas ou desinformadas, esses sonhos
representariam alarme de despertador (...) e para aquelas que já estão
conscientizadas e engajadas em atividades de natureza social, o sonho com o
homem sinistro seria quase um estimulante para lembrar à mulher o que ela está
enfrentando, para incentivá-la a continuar forte, vigilante e a prosseguir com
seu trabalho.
Portanto, quando as mulheres
sonham com o predador natural, nem sempre se trata exclusivamente de uma
mensagem sobre a vida interior. Às vezes é uma mensagem sobre os aspectos
ameaçadores da cultura em que vivemos, quer se trate de uma cultura limitada, porém
brutal, no escritório, dentro da própria família, na área da sua comunidade,
quer seja tão ampla quanto uma cultura religiosa ou nacional. Como se pode ver,
cada grupo e cada cultura parecem também ter seu próprio predador natural da
psique. E, a partir da história, observa-se a ocorrência de período na cultura
durante os quais o predador é identificado com uma soberania absoluta, que lhe
é permitida, até que as pessoas que discordam se transformam numa maré
incontrolável.
Embora uma grande vertente da
psicologia dê ênfase às causas familiares na angústia dos seres humanos, o
componente cultural tem o mesmo peso, pois a cultura é a família da família. Se
a família da família sofre de várias enfermidades, todas as famílias dentro
daquela cultura terão de lutar com os mesmos inconvenientes. Há um ditado que
diz que a cultura cura. Se a cultura tem essa propriedade medicinal, as
famílias aprendem a curar. Elas lutarão menos, serão mais reparadoras, ferirão
muito menos, serão muito mais gentis e carinhosas. Numa cultura dominada pelo
predador, toda nova vida que precisa nascer, bem como toda velha vida que
precisa partir, é incapaz de se movimentar, e a vida espiritual dos seus
cidadãos sofre um congelamento tanto pelo medo quanto pela inanição espiritual.
Por que motivo esse intruso que,
nos sonhos das mulheres, assume na maioria das vezes a forma de um homem
invasor procura atacar a psique instintiva e, em especial, seus poderes
selvagens de conhecimento, ninguém sabe dizer ao certo. Dizemos que está na
natureza das coisas. No entanto, encontramos esse processo destrutivo exacerbado
quando a cultura em volta da mulher alardeia, alimenta e protege atitudes
destrutivas para com a profunda natureza instintiva da alma. Com essas
atitudes, a cultura fortalece dentro da psique de todos os seus habitantes
esses valores extremamente destrutivos – com os quais o predador concorda
avidamente. Da mesma forma quando uma sociedade exorta seu povo a desconfiar da
profunda vida instintiva e a evitá-la, o elemento autopredatório nas nossas psiques
é reforçado e acelerado.
Contudo, mesmo numa cultura
opressora, em qualquer mulher na qual a Mulher Selvagem ainda viva e viceje ou
apenas cintile, haverá perguntas-chave sendo feitas, não só aquelas que nos são
úteis para o insight particular de cada um, mas também aquelas que tratam da
nossa cultura: “O que está por trás dessas proibições que vemos no mundo
exterior?”, “Que parte boa ou útil no indivíduo, na cultura, na terra, na
natureza humana foi morte ou está morrendo por aqui”. Uma vez examinadas essas
questões, a mulher está capacitada para agir de acordo com sua própria
competência, com seu próprio talento. Tomar o mundo nas mãos e agir com ele de
um modo inspirado e fortalecedor da alma é um poderoso ato do espírito
selvagem.
É por esse motivo que a natureza
selvagem das mulheres precisa ser preservada – e até mesmo, em alguns casos,
protegida com extrema vigilância para que não seja de repente seqüestrada e estrangulada.
É importante alimentar essa natureza instintiva, abrigá-la, dar-lhe condições
de expansão, pois mesmo nas condições mais restritivas da cultura, da família e
da psique, a paralisia é muito menor nas
mulheres que mantiveram seu vínculo com a natureza instintiva profunda e
selvagem. Embora haja danos se uma mulher for presa e/ou induzida a se manter
ingênua e submissa ainda sobra energia suficiente para superar o carcereiro,
escapar dele, correr mais do que ele e, finalmente, dividi-lo e desmanchá-lo
para seus próprios usos construtivos.
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(Clarissa P. Estés - Mulheres que
Correm com os Lobos – Capítulo 2: A Tocaia ao Intruso: O Princípio da Iniciação,
p.89 a 93)