sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Romper com Velhos Padrões: Difícil, mas Inevitável


Toda pessoa que procura a terapia sabe que chegou a hora de mudar algo em sua vida. Saber disso e realizar isso são coisas distantes, num primeiro momento. Com o desenrolar das sessões, vamos aproximando estes dois pontos até que eles se tornem uma unidade.

O caminho é difícil, pois neste intervalo tem-se que lidar com estruturas arcaicas, padrões estabelecidos na psique que serviram numa dada época da vida, mas que depois de um certo período, passam a ser obstáculos para a evolução do indivíduo.

Mas é justamente aí que se encontra o desafio, a prova crucial do processo analítico.

Nós, como analistas, temos a oportunidade de exercer a função de continente para nosso cliente, mas ao mesmo tempo temos que saber dar-lhe o estímulo adequado para questionar as “leis da sua vida” e, juntos, avaliar que “alicerces” pedem reforma. 

Muitos conflitos se movem em todo esse processo.  Muitas crises acontecem, muitos medos se revolteiam até que as novas bases estejam assentadas. É o preço das mudanças que nosso Self exige para nossa evolução como seres humanos.

Neste ponto, gostaria de transcrever um trecho do livro “Anatomia da Cura”, da Dra. Christine Page, que toca particularmente neste assunto:

Estabelecer novos parâmetros a partir dos quais trabalhar pode muitas vezes ser assustador, pois tudo quanto foi “comprovado pelo tempo” parece familiar e cômodo.

É freqüente haver medo de “ver” o que está por trás do conselheiro, principalmente quando este é o pai ou a mãe. Também pode haver medo do fracasso e de confiar nos próprios instintos recém-descobertos.

As palavras “Eu bem que avisei” ou “Depois não diga que não avisei” não ajudam quando estamos tomando decisões sozinhos.

Quando o sistema de crenças envolve mensagens repetidas sobre a auto-estima, pode ser muito difícil começar a desenvolver o senso de identidade e autovalorização.

O único papel que resta a um indivíduo nessas circunstâncias é acreditar que tudo quanto lhe acontece é culpa sua e que ele nunca vai conseguir nada que tentar obter.

Quando começam a desenvolver um grau modesto de auto-estima, podem até se sentir culpados por negar aquilo em que acreditaram durante tanto tempo.

Podem tornar-se a vítima e o algoz ao mesmo tempo, e o crescimento estaciona.

Na verdade, são os únicos a ter a chave que pode abrir a porta de sua prisão... muitos podem oferecer apoio, mas a “vítima” precisa abrir a porta para permitir que os amigos entrem.

Tudo requer tempo e uma das maneiras de sabotar qualquer movimento para a frente é estabelecer metas altas demais e, assim, realizar a crença subconsciente de que nada é possível.

Seja qual for o motivo, costuma ser muito difícil mudar o “disco” ou sistema de crenças arquivado no banco de dados da memória e substituí-lo por outro.

Mas, quando chega o momento certo, a mudança acontece de acordo com a Lei da Harmonia e do Equilibrio, e lá vamos nós, de boa vontade ou esperneando e gritando!

Eu poderia citar um monte de gente nos seus 50 ou 60 anos, homens e mulheres, cujos atos ainda são governados pelos sistemas de crenças de seus pais.

Como devem agir, o que devem usar, quanto devem se esforçar no trabalho, o que devem ler, o que devem comer.

Todos conselhos bons e sensatos em sua época, mas que talvez não sejam apropriados agora.

Sempre que ouço as palavras “você tem de fazer isso, é obrigado a fazer aquilo”, sei que estou diante de um problema que puxa uma pergunta: Quem disse? Raramente a resposta é “Eu”.

Por exemplo:

Maria era uma mulher bem sucedida, estava com 55 anos e era perfeccionista. Trabalhava o dia inteiro e depois se perguntava por que a cabeça não parava e não a deixava dormir.

Conversamos sobre relaxamento e lazer e ela disse que não eram atividades que fizessem parte de sua rotina, pois significavam a perda de um tempo precioso.

Perguntei-lhe qual a origem dessa rigorosa ética profissional e ela me contou que a mãe sempre lhe dissera que nunca conseguiria nada  e nunca seria alguém.

Durante os últimos 50 anos, ela tinha tentado provar que a mãe estava errada.

Não era capaz de olhar para suas conquistas e se dar os parabéns... Ainda procurava obter a aprovação da mãe.

Em épocas de mudança, é absolutamente válido voltar a hábitos antigos de comportamento durante os curtos períodos de tempo até os novos paradigmas já estarem bem “adaptados” e os antigos sistemas de crenças não combinarem mais com a nova imagem.

Deepak Chopra, em seu livro “Quantum Healing”, afirma que é muito difícil mudar velhos hábitos de uma vida inteira... não é impossível, mas requer um “salto quântico” mental, que significa soltar-se e confiar.

As leis do universo e da terra em que vivemos existem para evitar o caos e proporcionar segurança.

Mas as regras e os sistemas de crenças precisam ser avaliados de tempos em tempos para verificarmos se ainda estão harmônicos com a sabedoria do Eu Superior.

Essa sabedoria surge do desenvolvimento da intuição e reflete aquilo que é bom não só para o indivíduo, mas também para a humanidade como um todo.

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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Sincronicidade: Coincidências Significativas

SINCRONICIDADE

 No decorrer de nossa vida nos deparamos com as mais diversas circunstâncias. Muitas  delas, a maioria, passa mecanicamente, sem que percebamos em seu âmago algo especial ou determinante de novas situações.

 Mas, há certos momentos nos quais nosso estado de consciência se altera, em que conseguimos nos dar conta de algo que se move no “interior” dessas situações.

 Perceber a ligação entre nossa psique e os eventos externos é importante para detectarmos a expressão do Inconsciente Coletivo.

Um dos fenômenos mais ricos nesse sentido é a SINCRONICIDADE.

 Este termo foi criado por Carl Gustav Jung, médico psiquiatra, um dos mais célebres contribuintes para a moderna psicologia. Sobre esta questão ele disse: “Minha preocupação, com relação à psicologia dos processos inconscientes, obrigou-me, há muito tempo,  a procurar – além da causalidade – outro princípio de explicação, uma vez que o princípio da causalidade me parecia impróprio para explicar certos fenômenos surpreendentes da psicologia do inconsciente. Encontrei, assim, fenômenos psicológicos paralelos, que não podiam ser ligados entre si casualmente; deviam ser ligados de outra forma, por outro desenrolar de acontecimentos. Esta conexão de acontecimentos parecia-me ser essencialmente dada, por sua relativa simultaneidade, de onde o termo ‘sincronístico’. Parece, com efeito, que o tempo, longe de ser uma abstração, é um continuum concreto; ele inclui certas qualidades ou condições fundamentais que se manifestam, simultaneamente, em lugares diferentes, com um paralelismo que não pode ser explicado pela casualidade. É o caso, por exemplo, de símbolos, idéias ou estados psíquicos de aparecem simultaneamente”.

 Antes de adentrarmos no tema, vamos a uma breve explanação de alguns temas que vão ajudar na compreensão deste assunto:
 
a)      Consciência: é um “dar-se conta”, “aperceber-se” de uma realidade. Jung diz que nossa consciência não se cria a si mesma, mas emana das profundezas desconhecidas. Desperta gradualmente na infância e, ao longo da vida sai das profundezas do sono, de um estado de inconsciência.
 
b)      Inconsciente: é constituído por tudo aquilo que ignoramos, por aquilo que não tem qualquer relação com o eu, centro dos campos de consciência. É o desconhecido do mundo interior. Engloba tudo que conhecemos, mas sobre o que não pensamos num dado momento, tudo aquilo de que já tivemos consciência mas esquecemos, tudo o que foi percebido pelos sentidos e que o espírito consciente não registrou, tudo o que involuntariamente e sem prestar atenção (isto é, inconscientemente), sinto, penso, relembro, desejo e faço, todo o futuro que se prepara em nós e que só mais tarde se tornará consciente. Tudo isso é conteúdo do inconsciente. É de dois tipos: pessoal e coletivo.

c)      Inconsciente Pessoal: conjunto de todos os conteúdos reprimidos, assim como os instintos e os impulsos que levam à execução de ações comandadas por uma necessidade, mas não por uma motivação consciente (complexos). Esses conteúdos são parte integrante da personalidade individual e poderiam, pois, se tornar conscientes.

d)     Inconsciente Coletivo: zona ou faixa psíquica onde estariam as figuras, símbolos e conteúdos arquetípicos de caráter universal, frequentemente expressos em termos  mitológicos.

e)      Arquétipo: forma imaterial à qual os fenômenos psíquicos tendem a se moldar. É o modelo inato que serve de matriz para o desenvolvimento da psique. Os arquétipos são as tendências estruturais invisíveis dos símbolos. Criam imagens ou visões que correspondem a alguns aspectos da situação consciente. Também são chamados de imagens primordiais e, segundo Jung, se originam de uma constante repetição de uma mesma experiência, durante muitas gerações.

 
SINCRONICIDADE: CONCEITO

 Sincronicidade é uma COINCIDÊNCIA SIGNIFICATIVA que faz a ligação entre nossa psique e uma ocorrência exterior, na qual sentimos uma sensação de união entre o ser interior e o ser exterior. 

Diz Jung: “Escolhi o termo ‘sincronicidade’ porque a aparição simultânea dos dois acontecimentos, ligados pela significação, mas sem relação causal, me pareceu um critério decisivo. Emprego, pois, aqui, o conceito geral de sincronicidade, no sentido especial de coincidência, no tempo, de dois ou vários elementos, sem relação causal e que têm o mesmo conteúdo significativo, ou um sentido similar. Isto não é o mesmo que sincronismo, cujo significado é apenas o da aparição simultânea de dois fenômenos”.

A sincronicidade traz em si o conceito da totalidade, característica do Inconsciente Coletivo. O sentido de totalidade nos faz perceber que ninguém está isolado, que todos os fenômenos estão interligados e se influenciam mutuamente. O Inconsciente não é algo estático, mas possui um dinamismo próprio que objetiva a integração do ego. Ele usa dos elementos visíveis para que possamos nos conscientizar dos “invisíveis”, isto é, daquilo que não é óbvio para o ego, que se encontra num nível inconsciente.

 

CARACTERÍSTICAS DA SINCRONICIDADE

 A sincronicidade se dá nos mundos interno (psique) e externo, simultaneamente. Jung afirma que todas as pessoas, assim como os objetos, animados e inanimados, estão interligados por meio do Inconsciente Coletivo.

Como explicar o caso de uma pessoa que sonha ou tem um pensamento, ou um estado psicológico interior que coincida com um acontecimento exterior? Quem nunca vivenciou um fenômeno desses, em que uma coincidência significativa se deu, aparentemente sem explicação?

São exemplos de sincronicidade: sonhar com um acontecimento e ver ele se cristalizar no mundo físico, palpável; querer encontrar alguém e de repente topar com essa pessoa “por coincidência”; pensar em algo e ver que havia outra pessoa com a mesma idéia...

O fenômeno da sincronicidade atesta a idéia oriental da unidade de todas as coisas, isto é, estamos todos mergulhados na chamada “Alma Universal”, daí podemos perceber o que os outros percebem. Faculdades como a telepatia, protagonista de muitas sincronicidades, não seriam possíveis sem a evidência dessa totalidade que permeia a vida.

O indivíduo está no todo e o todo no indivíduo. Hermes Trismegisto, grande sábio da antiguidade, deixou um axioma que é muito conhecido: “assim como é acima é abaixo, assim como é abaixo é acima”.

Normalmente, a maior parte das pessoas têm dificuldade em perceber e aceitar a sincronicidade, bem como outros fenômenos, porque estão presas ao racionalismo. A percepção da totalidade ou unidade de todas as coisas é própria do lado criativo, emocional e mesmo intuicional do ser humano.

R. H. Blyth, erudito em haiku, disse: “O intelecto pode entender qualquer parte de algo como uma parte, porém não como um todo; pode compreender qualquer coisa que não seja Deus”.

Não devemos confundir sincronicidade com sincronia. Um evento sincrônico é qualquer coisa simultânea, eventos que ocorrem ao mesmo tempo (relógios, horários de ônibus, de aulas em escola, etc.). Na sincronicidade a “coincidência” tem um sabor especial, acontecendo de um marco de tempo subjetivo. A pessoa consegue fazer a ligação de dois episódios, e não é preciso que sejam simultâneos, embora com freqüência isso aconteça.

Sincronicidade e emocionalidade estão intimamente associadas. A sincronicidade provoca um estado emocional transformador. Ao percebermos um evento sincronístico somos tomados de uma emoção especial, que pode provocar mudanças imediatas em nossos estados de ânimo, ou mesmo propiciar alteração profunda de comportamentos.

 
TIPOS DE SINCRONICIDADE

Jung classificou a sincronicidade em três tipos:

1)      Coincidência entre o conteúdo mental (que pode ser um pensamento ou um sentimento) e um evento externo. Ex: pensar em alguém e topar com ele ou ela na rua.

2)      Ter um sonho ou visão que coincide com um acontecimento que está ocorrendo a certa distância (e isto é comprovado mais tarde). Ex: premonições e pressentimentos no momento do acontecimento.

3)      Uma pessoa vê uma imagem (como sonho, visão ou premonição) de algo que ocorrerá no futuro e que então efetivamente acontece. Ex: visão clarividente ou onírica de acontecimentos futuros.

Na sincronicidade é o participante que determina (através de sentimentos meramente subjetivos) se as coincidências são significativas. A sincronicidade é o princípio que Jung postula como o elo que liga a psique e o evento numa coincidência significativa.
 
A sincronicidade está embutida na causalidade. Para avaliar um evento sincronístico é preciso ter a capacidade de notar um estado interior subjetivo, e então conecta-lo intuitivamente a um evento exterior a ele interligado.

 
SINCRONICIDADE E INCONSCIENTE COLETIVO

Para Jung, a camada arquetípica do inconsciente está envolvida em eventos sincronísticos. É no Inconsciente Coletivo, universal e congênito que se encontram os arquétipos, padrões de comportamento instintivo, segundo Jung tão numerosos quantas as situações típicas que houver na vida. A repetição infinita gravou essas experiências dentro de nossa constituição psíquica. São exemplos de situações arquetípicas: nascimento, morte, casamento, laços entre mãe e filho, entre pai e filho, as lutas heróicas, etc.
 
Também entram no conceito de arquétipo as “imagens primordiais (aliás, outra maneira de conceituar um arquétipo) ou figuras que são ativadas e então revestidas com uma coloração emocional inferida pessoalmente.

O Self (si-mesmo) segundo Jung, é o ponto médio relacionado tanto com o Ego como com o Inconsciente, sem contudo ser equivalente a nenhum dos dois. O Self corresponde ao Tao oriental. É uma fonte de energia que impele a pessoa a “tornar-se o que ela é”, conferindo um sentido de ordem à personalidade. Vejamos o que Jung fala sobre o Self ou Si-Mesmo: “O si-mesmo é uma realidade ‘sobre-ordenada’ ao eu consciente. Abrange a psique consciente e a inconsciente, constituindo por esse fato uma personalidade mais ampla, que também somos... Mas não devemos nutrir a esperança de chegar a uma consciência aproximada do si-mesmo; por mais consideráveis e extensas que sejam as paisagens interiores e os setores apreendidos pela consciência, não desaparecerá à massa imprecisa e uma soma desconhecida de inconsciência, que também faz parte integrante da totalidade do si-mesmo. O si-mesmo é o centro e também a circunferência completa que compreende ao mesmo tempo o consciente e o inconsciente; é o centro dessa totalidade, como o eu é o centro da consciência”.

Jung afirma que não há nenhuma evolução linear; há apenas a circum-ambulação do self.

A sincronicidade é o princípio que faz a ligação entre nossa psique e uma ocorrência exterior, na qual sentimos uma misteriosa sensação de união entre o ser interior e o ser exterior. No decorrer da experiência de uma ocorrência sincronística, em vez de nos sentirmos como entidades separadas, isoladas num vasto mundo, experimentamos a interligação com os outros e percebemos o universo num nível profundo e significativo. Essa conexão subjacente é o Inconsciente Coletivo, e o evento sincronístico é uma de suas manifestações específicas.

 
PORQUE A SINCRONICIDADE ACONTECE

Como vimos, a sincronicidade é uma das formas de comunicação do Inconsciente Coletivo, uma das maneiras em que se expressa no mundo exterior. Ela ocorre dentro da “dança” ou circum-ambulação descrita por Jung. O Self quer que tomemos consciência da dança ou mutação do universo interior e que consigamos a integração com ele. É para isso que põe em ação os eventos sincronísticos.

O que proporciona a mudança causada pelos eventos sincronísticos são os estados psíquicos de alta sensitividade. Mudanças de estado emocional proporcionam a elevação do tônus do inconsciente, criando facilmente um declive em que o inconsciente pode fluir para o consciente. A consciência cai, então, sob a influência de impulsos e conteúdos instintivos inconscientes. Geralmente, estes últimos são complexos cuja base última é o arquétipo.

O inconsciente contém, igualmente, percepções subliminares, bem como imagens esquecidas na memória que não podem ser reproduzidas no momento, ou mesmo nunca. Mas, estas imagens radicadas ou não em bases já existentes, se acham em uma relação significativa, análoga ou equivalente a acontecimentos objetivos que não tem com eles nenhuma relação causal reconhecível ou mesmo imaginável.

Há, no inconsciente, uma espécie de conhecimento ou “presença a priori” de acontecimentos, sem qualquer base causal. Jung denominou essa “presença” de “espírito” que, autonomamente, move os arquétipos.

A alma se acha tão desejosa daquela coisa que ela gostaria de realizar, que escolhe espontaneamente a hora ou o momento melhor e mais significativo, que rege também as coisas que concordam melhor com o objetivo de que se ocupa. Aquilo que somos internamente mobiliza forças para alcançar sua meta.

Jung, em seu livro “Sincronicidade”, diz: “O fenômeno da sincronicidade é constituído, portanto, de dois fatores: 1) uma imagem inconsciente alcança a consciência de maneira direta (literalmente) ou indireta (simbolizada ou sugerida) sob a forma de sonhos, associação ou premonição; 2) uma situação objetiva coincide com este conteúdo. Tanto uma coisa como a outra podem, por assim dizer, causar admiração.

 
CONCLUSÃO

A sincronicidade é uma das formas em que o Inconsciente se comunica com o mundo exterior. É um fenômeno especial e que pode produzir insights no psiquismo humano, na medida em que o indivíduo permita-se dar vazão à sua emocionalidade.

Fechamos este trabalho sobre a sincronicidade com as palavras de Jung:

“A emocionalidade da alma humana constitui (realmente) a causa principal de todas as coisas, porque pode afeta-las e modifica-las. A alma se acha, com efeito, tão desejosa daquela coisa que ela gostaria de realizar que escolhe espontaneamente a hora astrológica melhor e mais significativa que rege também as coisas que concordam melhor com o objetivo de que se ocupa”.

 
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domingo, 10 de novembro de 2013

Neurodermite e o Arquétipo da Mãe (Estudo de Caso Pela Via Junguiana)


NEURODERMITE E O ARQUÉTIPO DA MÃE (Estudo de Caso Pela Via Junguiana)

 Querendo abordar a questão do arquétipo da “Mãe”, me deparei com um texto de Judith Harris, em seu livro “Jung e o Ioga: A Ligação Corpo-Mente”.

Judith foi musicista, tocava piano, mas ainda muito jovem desenvolveu uma grave doença que a impediu de seguir esse caminho. Sentia fortes dores, que os recursos da medicina tradicional não resolviam. Aos poucos, ela se deu conta de que seus problemas físicos não podiam ser resolvidos sem levar em conta os elementos psíquicos subjacentes. 

Começou a fazer análise junguiana em combinação com a prática de Yoga. Depois de muitos processos internos, delineou um novo caminho. Curou-se e, como analista junguiana e especialista em Yoga, dedicou-se a proporcionar a outros a mesma oportunidade de autoconhecimento.

Segue, abaixo, a descrição do processo de uma de suas pacientes: June.

June começou as sessões de análise logo após seu aniversário de vinte e um anos. Naquela época ela estava e um momento bastante crítico, sofrendo de neurodermite, uma doença que produz inflamação crônica severa da pele. Não era mais possível reconhecê-la como uma jovem, parecia uma senhora murcha e enferma. Ao redor dos seus olhos formavam-se vários círculos inchados, o que dificultava muito o contato visual com ela. A doença afetava sei corpo desde a cabeça até pouco acima dos tornozelos. A pele do pescoço estava tão grossa que ela mal podia mover a cabeça de um lado para outro. Estava exausta por não conseguir dormir – a coceira era incessante. Sua pele tinha cortes e feridas tão profundas que eu sentia cheiro de sangue assim que ela entrava na sala. Ela veio para a análise investigar o possível componente psicossomático da doença, e também para obter ajuda para lidar com sua tremenda angústia.

June estava desesperada. Ela havia tentado diversas terapias medicamentosas durante cerca de meio ano, incluindo vários meses em uma clínica alemã especializada em pele. Tinha usado tanta cortisona, que passou a não fazer mais efeito. O uso de cortisona a longo prazo realmente causa um afinamento da pele, reduzindo ainda mais sua capacidade natural de funcionar como filtro semipermeável entre os ambientes interno e externo. June passou a repudiar a terapia medicamentosa, ficou com medo dos efeitos a longo prazo, e havia parado de usar cortisona algumas semanas antes de nosso primeiro encontro. O problema de pele piorou quando ela parou de tomar cortisona, mas não em um grau considerável.

O dermatologista afirmou que ela não melhoraria a menos que continuasse usando cortisona em grandes quantidades, uso interno e tópico. De uma outra perspectiva, no entanto, recordei que um sintoma é uma tentativa natural por parte da psique em direção à cura, em direção à plenitude. Senti fortemente que o sintoma que se manifestava nesta insuportável doença de pele era, paradoxalmente, um passo para a cura. A doença frequentemente é o estímulo capaz de trazer a transformação. Por isso, Jung nos lembra “o princípio fundamental de que a sintomatologia de uma doença é ao mesmo tempo uma tentativa natural para a cura”.

Parecia-me que tudo o que era doloroso demais para June trazer à consciência vinha à tona de forma indireta, como sintoma expresso no corpo. A estrutura psíquica estava fraca demais para suportar o conflito, qualquer que fosse, então o conflito havia tomado seu corpo. Na verdade, quando uma doença se manifesta no corpo é mais fácil lidar com ela, embora os sintomas possam ter torturantes. No entanto, quando uma doença ocorre na psique, ela é invisível e fica mais difícil de tratar. A doença de June agora se manifestava no lado infravermelho do espectro, no corpo. Na verdade, ela estava sendo forçada a lidar diretamente com a cor vermelha, que se manifestava como uma vermelhidão bem como um terrível sangramento em sua pele. O âmbito instintivo estava literalmente gritando para ser ouvido, pois a integração do instinto é essencial para o processo de individuação.

A cortisona é conhecida como um imunossupressor, reduzindo assim a produção das “células e combate” naturais do corpo. Precisamos dessas guerreiras para combater a doença e sabe-se que a ingestão prolongada de cortisona pode acarretar sérios problemas. Eu acreditava que a doença de pele era a manifestação de algo psíquico tentando encontrar expressão por meio daquele sintoma  corporal e, com a ingestão de cortisona só poderia suprimir essa capacidade, além de reduzir a capacidade de June resistir a outras doenças, decidi apoiar sua tentativa, contra o conselho dos médicos, para encontrar outra forma de cura. Ao olhar para trás, vejo que naquele momento demos um grande passo diante de nossa decisão de lidarmos juntas com o que pudesse vir do inconsciente. Primeiro tínhamos de lidar com a doença de pele que piorava, porém, a tentativa de cura, do tomar consciência, tornava-se ainda mais urgente.

Nós tínhamos apenas duas horas juntas e June saiu de férias. Antes de sair, perguntei-lhe se ela gostaria de levar um pouco de argila. June prontamente pegou uma faca, cortou a argila ao meio sobre a minha mesa, e perguntou se podia ficar com metade, dizendo que deixaria a outra metade para quando voltasse. A pele é o órgão do toque, na verdade o órgão do sentir, já que tocamos e sentimos as coisas com as nossas mãos. Parecia que June havia recebido muito pouco sentimento de sua mãe. Esta vinha de uma família chinesa de classe alta em que faltavam a espontaneidade, a cordialidade e o contato físico. June não foi uma criança desejada. Seus pais se casaram por causa da gravidez, e ambos se envergonhavam do casamento. O nascimento de June não foi comemorado. Como os diz Marion Woodman: “Uma mãe que não consegue acolher sua filha no mundo deixa-a sem base. Da mesma forma, a mãe dessa mãe e a avó provavelmente não dispunham das raízes profundas que ligam o corpo de uma mulher à terra. Seja qual for a causa, sua própria vida instintiva não estará disponível”.

Na verdade, quando June ficou seriamente doente, sua mãe lhe aplicou o creme de cortisona usando luvas grossas de látex. June disse que gostaria de ter sentido um toque real de sua mãe, especialmente por estar tão doente. Eu senti que trabalhar com argila seria o começo do contato com algo que ela poderia tomar em suas mãos e moldar como quisesse.

O que June precisava era criar um corpo novo e transformado para si. Ao fazer isso, ela conseguiria reunir as partes desconectadas de si mesma, e seu espírito e corpo se tornariam um. Senti que trabalhar com a argila era algo que sustentaria essa transformação. Na Alquimia, o objetivo do trabalho é a transformação de metais básicos em ouro, que é considerado o resultado final de um longo período de gestação no íntimo da terra. O ouro representa corpo sutil. O corpo transformado, portanto, representaria para June a ligação com a parte eterna de si, permitindo assim que o próprio corpo passasse por uma mudança profunda. Na verdade, a pele de June ficou bastante limpa depois de aproximadamente oito meses de análise.

Encontramos muitas situações similares à dessa jovem, em que a experiência do arquétipo da mãe foi predominantemente negativa. A relação mãe-filho no início da vida é absolutamente vital para o desenvolvimento futuro dessa criança. D.W. Winnicott descreve isso como “a preocupação materna primária”. Em outras palavras, a mãe deve desenvolver uma identificação consciente, mas também profundamente inconsciente com a criança: “A mãe que desenvolve esse estado que eu chamei de ‘preocupação materna primária’ fornece um cenário para a constituição da criança começar a se fazer evidente, para que as tendências de desenvolvimento comecem a se desdobrar, e para a criança experimentar um movimento espontâneo e tornar-se dona das sensações que são apropriadas nessa fase inicial da vida”.

Podemos verificar na afirmação acima como pode surgir a falha da relação com o corpo.

Ao usar a argila que lhe dei, June estaria trabalhando com a prima materia. Estaria trabalhando com o lugar no tempo anterior ao nascimento, antes do carma e da experiência de vida que traz o destino até nos. Ela estaria retornando suavemente ao ponto anterior ao início do tempo, trazendo uma cura verdadeira para a profunda ferida criada no domínio do corpo ou instinto. Amassar argila é trabalhar com o corpo. Lemos na Bíblia que o primeiro homem, Adão, nasceu do pó da terra. Da terra misturada à água, surge a argila. Em um texto de alquimia datado do século 17, podemos ler: “Quando a água caiu sobre a terra, surgiu Adão”.

Na verdade, ao usar argila, June estaria trabalhando diretamente com sua doença. Na Antiguidade, a pele era comparada à alma. Pelo processo de amassar e modelar argila, June estaria na verdade trabalhando com sua alma, cuja aflição se manifestava no corpo.

June oscilava entre os opostos da vida e da morte. Naquela época, ela compartilhou comigo um trecho extraído de suas anotações: “Não agüento mais isso! Quero outra pele. A minha ficou muito grossa, a coceira é insuportável. Por que estou sendo castigada dessa forma? Que devo fazer para ficar livre dessa tortura infernal? Por que ninguém me ajuda? Não consigo suportar. Quero coçar minha pele até arrancar toda ela. Não agüento mais, não vou agüentar mais um dia sequer”.

June e eu sabíamos que algo importante teria de acontecer para aliviar seu sofrimento. Frequentemente é preciso ir à profundidade para que as coisas mudem. Com toda aquela coceira e sangramento, ela estava perdendo grande parte de sua antiga pele. Ela teria de abrir mão de uma atitude, e de alguma forma começar a abraçar algo novo. A análise não “cura” as pessoas por si mesma. É bem mais exato falarmos em um reajuste de atitude; em outras palavras, com o tempo, surge uma nova forma de olhar a própria vida. June teria literalmente de largar suas velhas atitudes, sua pele antiga, por assim dizer, para que a transformação fosse possível. Ela teria de tomar uma decisão muito significativa, pois, caso não estivesse realmente disposta a abandonar algumas de suas atitudes com relação a si mesma e ao mundo à sua volta, poderia chegar à morte física ou psíquica. Felizmente, ela estava pronta, e nosso trabalho começou com forte intensidade.