REGRESSÃO E RELIGIÃO
Paralelamente àquilo que foi dito até agora, torna-se claro
na regressão um outro motivo básico do adoecimento por câncer que, igualmente
mergulhado nas sombras, é vivido de maneira substitutiva pelo corpo. Regressão
é a volta aos inícios, à origem. Os afetados perderam o contato com sua origem
primária, as células do tumor têm de viver o tema em si mesmas e o fazem
corporalmente à sua maneira letal. A pessoa evidentemente precisa do
relacionamento vivo com suas raízes, a re-ligio.
Mas isso não significa apenas o passo atrás, mas também uma
retomada. Somente o passo atrás que se torna uma religação torna o progresso
real possível. Essa aparente contradição é expressa também na imagem do câncer.
Por um lado as células dão um passo atrás e retrocedem às primitivas formas
juvenis e por outro, com a tendência à onipotência e à imortalidade, progridem
furiosamente.
Tal contradição somente pode ser resolvida pelo sentido
primário da religião. Religio quer dizer religação com a origem, com a unidade.
Por outro lado, esta unidade chamada de Paraíso pela cristandade, é também o
objetivo do caminho de desenvolvimento cristão. Segundo a Bíblia, os homens
provêm do Paraíso e um dia devem voltar para lá. É o caminho que vai da unidade
inconsciente para a unidade consciente. A expulsão do Paraíso é completada pelo
retorno do filho pródigo à casa de seu pai. Podemos ver quão profundamente este
padrão arquetípico está enraizado no ser humano pelo fato de a religião hindu
descrever o caminho de maneira bastante análoga: “Daqui para aqui”. O antigo
símbolo do uroboro, a srpente que morde a própria cauda, é a imagem mais
oportuna deste padrão verdadeiramente abrangente. As religiões sempre descrevem
o caminho rumo à iluminação, ou seja, rumo à imortalidade, como uma caminhada
para a frente em direção à saída e o caminho como um movimento circular, ou
seja, em espiral. Consideração e cuidado são igualmente necessários e visam o
mesmo objetivo, a unidade.
Nos pacientes de câncer, a recuperação da consciência da
origem com a pergunta “De onde venho”, assim como a perspectiva futura, com a
pergunta “Para onde vou”, saíram da consciência para mergulhar nas sombras,
passando a ser representadas corporalmente. O cuidado e consideração exagerados
com que os afetados se mantêm nos estreitos limites da vizinhança e do futuro
concretos mostram como eles se tornaram míopes para o significado direto das
perguntas. Eles têm tanta consideração para com as outras pessoas, sua moral e
suas regras de vida e vão ao encontro do amanhã e de tudo que é novo e distante
com tanto cuidado, que não sobra espaço algum para as grandes questões do
passado e do futuro. O processo cancerígeno, com sua regressão ao abismo e seu
avanço desesperado, é um espelho tão terrível como fiel da situação.
O retorno consciente ao início, com suas possibilidades
ilimitadas, e a busca de valores eternos, são caminhos totalmente válidos. O
deslocamento para o inconsciente, ao contrário, leva à “doença como caminho”. E
também esse caminho é sempre um caminho que, mesmo sendo terrível, traz em si a
possibilidade de dar frutos. É algo assim como uma última sacudida para que se
desperte para as próprias necessidades.
É aí que se encaixa a experiência psicoterapêutica de que
frequentemente os pacientes de câncer são profundamente “arreligiosos”. E ainda
que muitos perfis de personalidade pareçam contradizer isso e enfatizem a
religiosidade e a devoção ao destino, trata-se na maioria das vezes daquela
crendice de igreja que não tem nenhum ponto de contato com a religio, mas que
deixa que a vida seja administrada e regulamentada pela autoridade
eclesiástica. Aferrar-se a prescrições religiosas e na verdade o contrário da
religio e deixa o coração frio e vazio. O que parece uma impressionante vida
religiosa para o exterior, evidentemente pode ser oco no íntimo. A falta de
vida no centro de uma atividade externa exagerada é representada anatomicamente
por muitos tumores que têm seus centros necrosados (=partes mortas). De maneira
semelhante, a devoção, a entrega ao destino descoberta pelos sociólogos da
medicina não deve ser confundida com a postura religiosa do “Seja feita a Sua
vontade!” Na maioria das vezes, trata-se de resignação em relação a um destino
sentido como superior, mas que não se aceita. No mais profundo íntimo, a base
da entrega não é a confiança na criação de Deus, mas sim o desespero e a
impotência. Em vez de entregar-se à vida e às suas possibilidades, os pacientes
potenciais de câncer estão entregues a
seus cuidados e considerações a curto prazo e a um medo fundamental da
existência.
("A Doença Como Linguagem da Alma", Dr. Rudiger Dahlke)