NEURODERMITE E O ARQUÉTIPO DA MÃE (Estudo de Caso Pela
Via Junguiana)
Judith foi musicista, tocava piano, mas ainda muito jovem
desenvolveu uma grave doença que a impediu de seguir esse caminho. Sentia
fortes dores, que os recursos da medicina tradicional não resolviam. Aos
poucos, ela se deu conta de que seus problemas físicos não podiam ser
resolvidos sem levar em conta os elementos psíquicos subjacentes.
Começou a fazer análise junguiana em combinação com a
prática de Yoga. Depois de muitos processos internos, delineou um novo caminho.
Curou-se e, como analista junguiana e especialista em Yoga, dedicou-se a
proporcionar a outros a mesma oportunidade de autoconhecimento.
Segue, abaixo, a descrição do processo de uma de suas
pacientes: June.
June começou as sessões de análise logo após seu aniversário
de vinte e um anos. Naquela época ela estava e um momento bastante crítico,
sofrendo de neurodermite, uma doença que produz inflamação crônica severa da
pele. Não era mais possível reconhecê-la como uma jovem, parecia uma senhora
murcha e enferma. Ao redor dos seus olhos formavam-se vários círculos inchados,
o que dificultava muito o contato visual com ela. A doença afetava sei corpo
desde a cabeça até pouco acima dos tornozelos. A pele do pescoço estava tão
grossa que ela mal podia mover a cabeça de um lado para outro. Estava exausta
por não conseguir dormir – a coceira era incessante. Sua pele tinha cortes e
feridas tão profundas que eu sentia cheiro de sangue assim que ela entrava na
sala. Ela veio para a análise investigar o possível componente psicossomático
da doença, e também para obter ajuda para lidar com sua tremenda angústia.
June estava desesperada. Ela havia tentado diversas terapias
medicamentosas durante cerca de meio ano, incluindo vários meses em uma clínica
alemã especializada em pele. Tinha usado tanta cortisona, que passou a não
fazer mais efeito. O uso de cortisona a longo prazo realmente causa um
afinamento da pele, reduzindo ainda mais sua capacidade natural de funcionar
como filtro semipermeável entre os ambientes interno e externo. June passou a
repudiar a terapia medicamentosa, ficou com medo dos efeitos a longo prazo, e
havia parado de usar cortisona algumas semanas antes de nosso primeiro
encontro. O problema de pele piorou quando ela parou de tomar cortisona, mas
não em um grau considerável.
O dermatologista afirmou que ela não melhoraria a menos que
continuasse usando cortisona em grandes quantidades, uso interno e tópico. De
uma outra perspectiva, no entanto, recordei que um sintoma é uma tentativa
natural por parte da psique em direção à cura, em direção à plenitude. Senti
fortemente que o sintoma que se manifestava nesta insuportável doença de pele
era, paradoxalmente, um passo para a cura. A doença frequentemente é o estímulo
capaz de trazer a transformação. Por isso, Jung nos lembra “o princípio fundamental
de que a sintomatologia de uma doença é ao mesmo tempo uma tentativa natural
para a cura”.
Parecia-me que tudo o que era doloroso demais para June
trazer à consciência vinha à tona de forma indireta, como sintoma expresso no
corpo. A estrutura psíquica estava fraca demais para suportar o conflito,
qualquer que fosse, então o conflito havia tomado seu corpo. Na verdade, quando
uma doença se manifesta no corpo é mais fácil lidar com ela, embora os sintomas
possam ter torturantes. No entanto, quando uma doença ocorre na psique, ela é
invisível e fica mais difícil de tratar. A doença de June agora se manifestava
no lado infravermelho do espectro, no corpo. Na verdade, ela estava sendo
forçada a lidar diretamente com a cor vermelha, que se manifestava como uma
vermelhidão bem como um terrível sangramento em sua pele. O âmbito instintivo
estava literalmente gritando para ser ouvido, pois a integração do instinto é
essencial para o processo de individuação.
A cortisona é conhecida como um imunossupressor, reduzindo
assim a produção das “células e combate” naturais do corpo. Precisamos dessas
guerreiras para combater a doença e sabe-se que a ingestão prolongada de
cortisona pode acarretar sérios problemas. Eu acreditava que a doença de pele
era a manifestação de algo psíquico tentando encontrar expressão por meio
daquele sintoma corporal e, com a
ingestão de cortisona só poderia suprimir essa capacidade, além de reduzir a
capacidade de June resistir a outras doenças, decidi apoiar sua tentativa,
contra o conselho dos médicos, para encontrar outra forma de cura. Ao olhar
para trás, vejo que naquele momento demos um grande passo diante de nossa
decisão de lidarmos juntas com o que pudesse vir do inconsciente. Primeiro
tínhamos de lidar com a doença de pele que piorava, porém, a tentativa de cura,
do tomar consciência, tornava-se ainda mais urgente.
Nós tínhamos apenas duas horas juntas e June saiu de férias.
Antes de sair, perguntei-lhe se ela gostaria de levar um pouco de argila. June
prontamente pegou uma faca, cortou a argila ao meio sobre a minha mesa, e
perguntou se podia ficar com metade, dizendo que deixaria a outra metade para
quando voltasse. A pele é o órgão do toque, na verdade o órgão do sentir, já
que tocamos e sentimos as coisas com as nossas mãos. Parecia que June havia
recebido muito pouco sentimento de sua mãe. Esta vinha de uma família chinesa
de classe alta em que faltavam a espontaneidade, a cordialidade e o contato
físico. June não foi uma criança desejada. Seus pais se casaram por causa da gravidez,
e ambos se envergonhavam do casamento. O nascimento de June não foi comemorado.
Como os diz Marion Woodman: “Uma mãe que
não consegue acolher sua filha no mundo deixa-a sem base. Da mesma forma, a mãe
dessa mãe e a avó provavelmente não dispunham das raízes profundas que ligam o
corpo de uma mulher à terra. Seja qual for a causa, sua própria vida instintiva
não estará disponível”.
Na verdade, quando
June ficou seriamente doente, sua mãe lhe aplicou o creme de cortisona usando
luvas grossas de látex. June disse que gostaria de ter sentido um toque real de
sua mãe, especialmente por estar tão doente. Eu senti que trabalhar com argila
seria o começo do contato com algo que ela poderia tomar em suas mãos e moldar
como quisesse.
O que June precisava
era criar um corpo novo e transformado para si. Ao fazer isso, ela conseguiria
reunir as partes desconectadas de si mesma, e seu espírito e corpo se tornariam
um. Senti que trabalhar com a argila era algo que sustentaria essa
transformação. Na Alquimia, o objetivo do trabalho é a transformação de metais
básicos em ouro, que é considerado o resultado final de um longo período de
gestação no íntimo da terra. O ouro representa corpo sutil. O corpo
transformado, portanto, representaria para June a ligação com a parte eterna de
si, permitindo assim que o próprio corpo passasse por uma mudança profunda. Na
verdade, a pele de June ficou bastante limpa depois de aproximadamente oito
meses de análise.
Encontramos muitas
situações similares à dessa jovem, em que a experiência do arquétipo da mãe foi
predominantemente negativa. A relação mãe-filho no início da vida é
absolutamente vital para o desenvolvimento futuro dessa criança. D.W. Winnicott
descreve isso como “a preocupação materna primária”. Em outras palavras, a mãe
deve desenvolver uma identificação consciente, mas também profundamente
inconsciente com a criança: “A mãe que
desenvolve esse estado que eu chamei de ‘preocupação materna primária’ fornece
um cenário para a constituição da criança começar a se fazer evidente, para que
as tendências de desenvolvimento comecem a se desdobrar, e para a criança
experimentar um movimento espontâneo e tornar-se dona das sensações que são
apropriadas nessa fase inicial da vida”.
Podemos verificar na
afirmação acima como pode surgir a falha da relação com o corpo.
Ao usar a argila que
lhe dei, June estaria trabalhando com a prima
materia. Estaria trabalhando com o lugar no tempo anterior ao nascimento,
antes do carma e da experiência de vida que traz o destino até nos. Ela estaria
retornando suavemente ao ponto anterior ao início do tempo, trazendo uma cura
verdadeira para a profunda ferida criada no domínio do corpo ou instinto.
Amassar argila é trabalhar com o corpo. Lemos na Bíblia que o primeiro homem,
Adão, nasceu do pó da terra. Da terra misturada à água, surge a argila. Em um
texto de alquimia datado do século 17, podemos ler: “Quando a água caiu sobre a terra, surgiu Adão”.
Na verdade, ao usar
argila, June estaria trabalhando diretamente com sua doença. Na Antiguidade, a
pele era comparada à alma. Pelo processo de amassar e modelar argila, June
estaria na verdade trabalhando com sua alma, cuja aflição se manifestava no
corpo.
June oscilava entre
os opostos da vida e da morte. Naquela época, ela compartilhou comigo um trecho
extraído de suas anotações: “Não agüento
mais isso! Quero outra pele. A minha ficou muito grossa, a coceira é
insuportável. Por que estou sendo castigada dessa forma? Que devo fazer para
ficar livre dessa tortura infernal? Por que ninguém me ajuda? Não consigo
suportar. Quero coçar minha pele até arrancar toda ela. Não agüento mais, não
vou agüentar mais um dia sequer”.
June e eu sabíamos
que algo importante teria de acontecer para aliviar seu sofrimento.
Frequentemente é preciso ir à profundidade para que as coisas mudem. Com toda
aquela coceira e sangramento, ela estava perdendo grande parte de sua antiga
pele. Ela teria de abrir mão de uma atitude, e de alguma forma começar a
abraçar algo novo. A análise não “cura” as pessoas por si mesma. É bem mais
exato falarmos em um reajuste de atitude; em outras palavras, com o tempo,
surge uma nova forma de olhar a própria vida. June teria literalmente de largar
suas velhas atitudes, sua pele antiga, por assim dizer, para que a
transformação fosse possível. Ela teria de tomar uma decisão muito
significativa, pois, caso não estivesse realmente disposta a abandonar algumas
de suas atitudes com relação a si mesma e ao mundo à sua volta, poderia chegar
à morte física ou psíquica. Felizmente, ela estava pronta, e nosso trabalho
começou com forte intensidade.
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