domingo, 10 de novembro de 2013

Neurodermite e o Arquétipo da Mãe (Estudo de Caso Pela Via Junguiana)


NEURODERMITE E O ARQUÉTIPO DA MÃE (Estudo de Caso Pela Via Junguiana)

 Querendo abordar a questão do arquétipo da “Mãe”, me deparei com um texto de Judith Harris, em seu livro “Jung e o Ioga: A Ligação Corpo-Mente”.

Judith foi musicista, tocava piano, mas ainda muito jovem desenvolveu uma grave doença que a impediu de seguir esse caminho. Sentia fortes dores, que os recursos da medicina tradicional não resolviam. Aos poucos, ela se deu conta de que seus problemas físicos não podiam ser resolvidos sem levar em conta os elementos psíquicos subjacentes. 

Começou a fazer análise junguiana em combinação com a prática de Yoga. Depois de muitos processos internos, delineou um novo caminho. Curou-se e, como analista junguiana e especialista em Yoga, dedicou-se a proporcionar a outros a mesma oportunidade de autoconhecimento.

Segue, abaixo, a descrição do processo de uma de suas pacientes: June.

June começou as sessões de análise logo após seu aniversário de vinte e um anos. Naquela época ela estava e um momento bastante crítico, sofrendo de neurodermite, uma doença que produz inflamação crônica severa da pele. Não era mais possível reconhecê-la como uma jovem, parecia uma senhora murcha e enferma. Ao redor dos seus olhos formavam-se vários círculos inchados, o que dificultava muito o contato visual com ela. A doença afetava sei corpo desde a cabeça até pouco acima dos tornozelos. A pele do pescoço estava tão grossa que ela mal podia mover a cabeça de um lado para outro. Estava exausta por não conseguir dormir – a coceira era incessante. Sua pele tinha cortes e feridas tão profundas que eu sentia cheiro de sangue assim que ela entrava na sala. Ela veio para a análise investigar o possível componente psicossomático da doença, e também para obter ajuda para lidar com sua tremenda angústia.

June estava desesperada. Ela havia tentado diversas terapias medicamentosas durante cerca de meio ano, incluindo vários meses em uma clínica alemã especializada em pele. Tinha usado tanta cortisona, que passou a não fazer mais efeito. O uso de cortisona a longo prazo realmente causa um afinamento da pele, reduzindo ainda mais sua capacidade natural de funcionar como filtro semipermeável entre os ambientes interno e externo. June passou a repudiar a terapia medicamentosa, ficou com medo dos efeitos a longo prazo, e havia parado de usar cortisona algumas semanas antes de nosso primeiro encontro. O problema de pele piorou quando ela parou de tomar cortisona, mas não em um grau considerável.

O dermatologista afirmou que ela não melhoraria a menos que continuasse usando cortisona em grandes quantidades, uso interno e tópico. De uma outra perspectiva, no entanto, recordei que um sintoma é uma tentativa natural por parte da psique em direção à cura, em direção à plenitude. Senti fortemente que o sintoma que se manifestava nesta insuportável doença de pele era, paradoxalmente, um passo para a cura. A doença frequentemente é o estímulo capaz de trazer a transformação. Por isso, Jung nos lembra “o princípio fundamental de que a sintomatologia de uma doença é ao mesmo tempo uma tentativa natural para a cura”.

Parecia-me que tudo o que era doloroso demais para June trazer à consciência vinha à tona de forma indireta, como sintoma expresso no corpo. A estrutura psíquica estava fraca demais para suportar o conflito, qualquer que fosse, então o conflito havia tomado seu corpo. Na verdade, quando uma doença se manifesta no corpo é mais fácil lidar com ela, embora os sintomas possam ter torturantes. No entanto, quando uma doença ocorre na psique, ela é invisível e fica mais difícil de tratar. A doença de June agora se manifestava no lado infravermelho do espectro, no corpo. Na verdade, ela estava sendo forçada a lidar diretamente com a cor vermelha, que se manifestava como uma vermelhidão bem como um terrível sangramento em sua pele. O âmbito instintivo estava literalmente gritando para ser ouvido, pois a integração do instinto é essencial para o processo de individuação.

A cortisona é conhecida como um imunossupressor, reduzindo assim a produção das “células e combate” naturais do corpo. Precisamos dessas guerreiras para combater a doença e sabe-se que a ingestão prolongada de cortisona pode acarretar sérios problemas. Eu acreditava que a doença de pele era a manifestação de algo psíquico tentando encontrar expressão por meio daquele sintoma  corporal e, com a ingestão de cortisona só poderia suprimir essa capacidade, além de reduzir a capacidade de June resistir a outras doenças, decidi apoiar sua tentativa, contra o conselho dos médicos, para encontrar outra forma de cura. Ao olhar para trás, vejo que naquele momento demos um grande passo diante de nossa decisão de lidarmos juntas com o que pudesse vir do inconsciente. Primeiro tínhamos de lidar com a doença de pele que piorava, porém, a tentativa de cura, do tomar consciência, tornava-se ainda mais urgente.

Nós tínhamos apenas duas horas juntas e June saiu de férias. Antes de sair, perguntei-lhe se ela gostaria de levar um pouco de argila. June prontamente pegou uma faca, cortou a argila ao meio sobre a minha mesa, e perguntou se podia ficar com metade, dizendo que deixaria a outra metade para quando voltasse. A pele é o órgão do toque, na verdade o órgão do sentir, já que tocamos e sentimos as coisas com as nossas mãos. Parecia que June havia recebido muito pouco sentimento de sua mãe. Esta vinha de uma família chinesa de classe alta em que faltavam a espontaneidade, a cordialidade e o contato físico. June não foi uma criança desejada. Seus pais se casaram por causa da gravidez, e ambos se envergonhavam do casamento. O nascimento de June não foi comemorado. Como os diz Marion Woodman: “Uma mãe que não consegue acolher sua filha no mundo deixa-a sem base. Da mesma forma, a mãe dessa mãe e a avó provavelmente não dispunham das raízes profundas que ligam o corpo de uma mulher à terra. Seja qual for a causa, sua própria vida instintiva não estará disponível”.

Na verdade, quando June ficou seriamente doente, sua mãe lhe aplicou o creme de cortisona usando luvas grossas de látex. June disse que gostaria de ter sentido um toque real de sua mãe, especialmente por estar tão doente. Eu senti que trabalhar com argila seria o começo do contato com algo que ela poderia tomar em suas mãos e moldar como quisesse.

O que June precisava era criar um corpo novo e transformado para si. Ao fazer isso, ela conseguiria reunir as partes desconectadas de si mesma, e seu espírito e corpo se tornariam um. Senti que trabalhar com a argila era algo que sustentaria essa transformação. Na Alquimia, o objetivo do trabalho é a transformação de metais básicos em ouro, que é considerado o resultado final de um longo período de gestação no íntimo da terra. O ouro representa corpo sutil. O corpo transformado, portanto, representaria para June a ligação com a parte eterna de si, permitindo assim que o próprio corpo passasse por uma mudança profunda. Na verdade, a pele de June ficou bastante limpa depois de aproximadamente oito meses de análise.

Encontramos muitas situações similares à dessa jovem, em que a experiência do arquétipo da mãe foi predominantemente negativa. A relação mãe-filho no início da vida é absolutamente vital para o desenvolvimento futuro dessa criança. D.W. Winnicott descreve isso como “a preocupação materna primária”. Em outras palavras, a mãe deve desenvolver uma identificação consciente, mas também profundamente inconsciente com a criança: “A mãe que desenvolve esse estado que eu chamei de ‘preocupação materna primária’ fornece um cenário para a constituição da criança começar a se fazer evidente, para que as tendências de desenvolvimento comecem a se desdobrar, e para a criança experimentar um movimento espontâneo e tornar-se dona das sensações que são apropriadas nessa fase inicial da vida”.

Podemos verificar na afirmação acima como pode surgir a falha da relação com o corpo.

Ao usar a argila que lhe dei, June estaria trabalhando com a prima materia. Estaria trabalhando com o lugar no tempo anterior ao nascimento, antes do carma e da experiência de vida que traz o destino até nos. Ela estaria retornando suavemente ao ponto anterior ao início do tempo, trazendo uma cura verdadeira para a profunda ferida criada no domínio do corpo ou instinto. Amassar argila é trabalhar com o corpo. Lemos na Bíblia que o primeiro homem, Adão, nasceu do pó da terra. Da terra misturada à água, surge a argila. Em um texto de alquimia datado do século 17, podemos ler: “Quando a água caiu sobre a terra, surgiu Adão”.

Na verdade, ao usar argila, June estaria trabalhando diretamente com sua doença. Na Antiguidade, a pele era comparada à alma. Pelo processo de amassar e modelar argila, June estaria na verdade trabalhando com sua alma, cuja aflição se manifestava no corpo.

June oscilava entre os opostos da vida e da morte. Naquela época, ela compartilhou comigo um trecho extraído de suas anotações: “Não agüento mais isso! Quero outra pele. A minha ficou muito grossa, a coceira é insuportável. Por que estou sendo castigada dessa forma? Que devo fazer para ficar livre dessa tortura infernal? Por que ninguém me ajuda? Não consigo suportar. Quero coçar minha pele até arrancar toda ela. Não agüento mais, não vou agüentar mais um dia sequer”.

June e eu sabíamos que algo importante teria de acontecer para aliviar seu sofrimento. Frequentemente é preciso ir à profundidade para que as coisas mudem. Com toda aquela coceira e sangramento, ela estava perdendo grande parte de sua antiga pele. Ela teria de abrir mão de uma atitude, e de alguma forma começar a abraçar algo novo. A análise não “cura” as pessoas por si mesma. É bem mais exato falarmos em um reajuste de atitude; em outras palavras, com o tempo, surge uma nova forma de olhar a própria vida. June teria literalmente de largar suas velhas atitudes, sua pele antiga, por assim dizer, para que a transformação fosse possível. Ela teria de tomar uma decisão muito significativa, pois, caso não estivesse realmente disposta a abandonar algumas de suas atitudes com relação a si mesma e ao mundo à sua volta, poderia chegar à morte física ou psíquica. Felizmente, ela estava pronta, e nosso trabalho começou com forte intensidade.

 

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