Remexendo
minha pequena,mas rica biblioteca, encontrei um livro de Erich Fromm, “A Arte
de Amar”, onde ele faz reflexões interessantes sobre todos os tipos de amor.
Há um
subtítulo no Capítulo 3 que fala sobre a diferença entre amor próprio e
egoísmo.
Acreditando
ser útil esclarecer o significado de cada um, transcrevemos abaixo o citado
trecho:
Embora não haja nenhuma objeção à
aplicação do conceito de amor a vários objetos, é uma crença muito difundida a
de que, se é virtuoso amar os outros, é pecado amar a si mesmo. Considera-se
que, se Omo a mim mesmo, não amo mais ninguém, que o amor a si mesmo é a mesma
coisa que o egoísmo. Essa ideia está arraigada há muito tempo no pensamento
ocidental. Calvino fala do amor a si mesmo como se fosse uma “peste”. Freud
fala de amor a si mesmo em termos psiquiátricos, mas seu juízo de valor é igual
ao de Calvino. Para ele o amor a si mesmo é a mesma coisa que o narcisismo, é a
libido voltando-se para si mesma. O narcisismo é o primeiro estágio do
desenvolvimento humano, e a pessoa que, mais adiante na vida, volta a seu
estado narcísico é incapaz de amar; nos casos extremos, é insana. Freud
considera que o amor é a manifestação da libido, e que a libido é ou voltada
para os outros (amor) ou para si mesmo (amor a si mesmo). Amor e amor a si
mesmo são, portanto, mutuamente exclusivos no sentido de que quanto mais há de
um, menos há do outro. Se o amor a si mesmo é ruim, então a abnegação é
virtuosa.
Põe-se a questão: a observação
psicológica suporta a tese de que há uma contradição básica entre amor a si e
amor aos outros? O amor a si é o mesmo fenômeno que o egoísmo ou trata-se de
fenômenos opostos? Além disso, o egoísmo do homem moderno é de fato uma
preocupação consigo mesmo enquanto indivíduo, com todas as suas potencialidades
intelectuais, emocionais e sensuais? Será que “ele” não se tornou um apêndice
de seu papel socioeconômico? O egoísmo é mesmo idêntico ao amor a si ou não seria
causado pela falta desse amor?
Antes de iniciarmos a discussão do
aspecto psicológico do egoísmo e do amor a si mesmo, precisamos apontar a
falácia lógica existente na noção de que o amor aos outros e o amor a si são
mutuamente exclusivos. Se é uma virtude amar o próximo como ser humano, deve
ser uma virtude – e não um vício – amar a mim mesmo, já que também sou um ser
humano. Não há concepção do homem em que eu mesmo não esteja incluído. Uma
doutrina que proclame tal exclusão se revela intrinsecamente contraditória. A
ideia expressa do “ama o próximo como a ti mesmo” da Bíblia implica que o
respeito a si mesmo, o amor e a compreensão por si mesmo não podem ser
separados do respeito, do amor e da compreensão por outro indivíduo. O amor por
meu próprio eu é inseparavelmente ligado ao amor por qualquer outro ser.
Chegamos agora às premissas
psicológicas básicas em que se fundamental as conclusões de nossa argumentação.
Em geral, essas premissas são as seguintes: não apenas os outros, mas nós
mesmos somos o “objeto” de nossos sentimentos e de nossas atitudes, as atitudes
em relação aos outros e a nós mesmos, longe de serem contraditórias, são
basicamente conjuntivas. No que concerne ao problema que estamos discutindo,
isso significa: o amor aos outros e o amor a nós mesmos não são alternativas.
Ao contrário, uma atitude de amor a si mesmo será encontrada em todos os que
são capazes de amar os outros. O amor, em princípio, é indivisível no que
concerne à conexão entre “objetos” e nosso próprio ser. O amor genuíno é uma
expressão de produtividade e supõe cuidado, respeito, responsabilidade e
conhecimento. Não é um “afeto” no sentido de ser afetado por alguém, mas um
esforço ativo no sentido do crescimento e da felicidade da pessoa amada,
arraigado em nossa própria capacidade de amar.
Amar alguém é a realização e a
concentração do poder de amar. A afirmação básica contida no amor é dirigida
para a pessoa amada como uma encarnação de qualidades essencialmente humanas. O
amor a uma pessoa implica o amor ao homem como tal. Essa espécie de “divisão de
trabalho”, conforme William James a chama, pela qual uma pessoa ama sua família
mas não tem nenhum sentimento para como o “estranho” é indício de uma
incapacidade básica de amar. O amor ao homem não é, como se costuma supor, uma
abstração que vem depois do amor por uma determinada pessoa, mas é sua
premissa, se bem que seja geneticamente adquirida amando-se indivíduos
determinados.
Decorre daí que meu eu tem de ser
objeto do meu amor tanto quanto outra pessoa. A afirmação da minha vida, da
minha felicidade, do meu crescimento, da minha liberdade, arraiga-se na minha
capacidade de amar, isto é, no cuidado, no respeito, na responsabilidade e no
conhecimento. Se um indivíduo é capaz de amar produtivamente, ele também se
ama; se ele só pode amar os outros, é que na verdade não pode amar.
Admitindo-se que o amor a si mesmo e aos outros é, em princípio, conjuntivo,
como explicaremos o egoísmo, que exclui obviamente qualquer preocupação genuína
pelos outros? A pessoa egoísta só se interessa por si mesma, quer tudo para si,
não tem prazer em dar, apenas em tomar. Ela vê o mundo exterior unicamente do
ponto de vista do que pode dele obter; ela não se interessa pelas necessidades
alheias, nem tem consideração pela dignidade e pela integridade delas. Não
enxerga nada, além de si mesma; julga todos e tudo do ponto de vista da
utilidade que podem ter para si; é basicamente incapaz de amar. Isso acaso não
prova que a preocupação pelos outros e a preocupação por si são alternativas
inevitáveis? Seria assim, se o egoísmo e o amor a si mesmo fossem idênticos.
Mas admitir tal hipótese é uma falácia que levou a muitas conclusões errôneas
com relação a nosso problema. Egoísmo e amor a si mesmo, longe de serem
idênticos, na verdade são opostos. A pessoa egoísta não se ama muito, ela se
ama pouco; na verdade, ela se odeia. Essa falta de carinho e de cuidado por si
mesmo, que nada mais é que a expressão da sua falta de produtividade, deixa o
egoísta vazio e frustrado. Ele é necessariamente infeliz e tenta ansiosamente
arrancar da vida as satisfações que se impede de alcançar. Parece preocupar-se
demasiado consigo, mas na verdade apenas faz uma tentativa malsucedida de
dissimular e compensar seu fracasso em cuidar de seu eu verdadeiro. Freud
considera que o egoísta é um narcisista, como se houvesse retirado seu amor dos
outros e voltado todo ele para a sua pessoa. É verdade que as pessoas egoístas
são incapazes de amar os outros, mas também não são capazes de amar a si
mesmas.
É mais fácil entender o egoísmo
comparando-o com a insaciável preocupação com os outros, que encontramos, que
encontramos por exemplo, na mãe super-protetora. Embora ela conscientemente
acredite ter uma hostilidade profundamente reprimida contra o objeto da sua
preocupação. Ela se preocupa em excesso com ele não apenas porque ama muito o
filho, mas porque precisa compensar sua falta pura e simples de capacidade de
amá-lo.
Essa teoria da natureza do egoísmo nasceu da experiência
psicanalítica com a “abnegação” neurótica, um sintoma de neurose observado em
não poucas pessoas que normalmente não se sentem perturbadas por esse sintoma,
mas por outros ligados a ele, como a depressão, o cansaço, a incapacidade de
trabalhar, o fracasso nos relacionamentos amorosos, e assim por diante. Não
apenas essa abnegação não é sentida como um “sintoma”, como costuma ser o traço
de caráter redentor de que tanta gente se orgulha. A pessoa “abnegada” não quer
nada para si”; ela “vive só para os outros”, orgulha-se de não se considerar
importante. Fica intrigada ao constatar que, apesar da sua abnegação, é
infeliz, e que seus relacionamentos com os mais próximos dela são
insatisfatórios. O trabalho analítico revela que sua abnegação não é algo
separado dos outros sintomas que apresenta, mas um deles – na verdade, costuma
ser o mais importante de todos; revela que ela está bloqueada em sua capacidade
de amar ou de aproveitar o que quer que seja; que está impregnada de
hostilidade contra a vida e que por trás da fachada abnegada está escondido um
egocentrismo sutil, mas nem por isso menos intenso. Essa pessoa só pode se
curar, se sua abnegação também for interpretada como um sintoma dentre outros,
de modo que sua falta de produtividade, que está na raiz tanto da abnegação
como de seus outros problemas, possa ser reparada.
A natureza da abnegação se torna
particularmente patente em seus efeitos sobre os outros, e na maior parte das vezes, em nossa cultura, no efeito
da mãe “abnegada” sobre seus filhos. Ela acredita que, graças à sua abnegação,
seus filhos experimentarão o que é ser amado e aprenderão, por sua vez, o que
significa amar. No entanto, o efeito da sua abnegação não corresponde de
maneira nenhuma às suas expectativas. Os filhos não denotam a felicidade das
pessoas convencidas de que são amadas; são ansiosos, tensos, temem a
desaprovação da mãe e anseiam por corresponder às suas expectativas.
Normalmente, todos eles são afetados pela hostilidade oculta da mãe contra a
vida, que eles muito mais sentem do que reconhecem claramente, e acabam eles
próprios imbuídos dela. Globalmente, os efeitos que a mãe “abnegada” produz
sobre seus filhos não é muito diferente dos da mãe egoísta; na verdade,
costumam ser piores, porque a abnegação da mãe impede que os filhos a critiquem.
Eles se vêem na obrigação de não desapontá-la; são ensinados, sob a máscara da
virtude, a não gostar da vida. Se você tiver a oportunidade de estudar o efeito
de uma mãe dotada de verdadeiro amor a si, poderá ver que nada conduz tão bem o
filho à experiência do que é o amor, a alegria e a felicidade, do que ser amado
por uma mãe que se ama.
A melhor maneira de resumir essas
idéias de amor a si mesmo é citar Mestre Eckhart sobre esse ponto: “Se você ama
a si mesmo, você ama todos os outros tanto quanto a si mesmo. Se você ama outra
pessoa menos do que se ama, na verdade não conseguirá amar a si mesmo; mas, se
você amar a todos, inclusive você, igualmente, então amará todos eles como se fossem uma só pessoa, e essa pessoa é
ao mesmo tempo Deus e homem. É assim uma grande e virtuosa pessoa que,
amando-se, ama igualmente todos os outros”.
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