terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Considerações Sobre Amor-Próprio e Egoismo


Remexendo minha pequena,mas rica biblioteca, encontrei um livro de Erich Fromm, “A Arte de Amar”, onde ele faz reflexões interessantes sobre todos os tipos de amor.
Há um subtítulo no Capítulo 3 que fala sobre a diferença entre amor próprio e egoísmo.

Acreditando ser útil esclarecer o significado de cada um, transcrevemos abaixo o citado trecho:

Embora não haja nenhuma objeção à aplicação do conceito de amor a vários objetos, é uma crença muito difundida a de que, se é virtuoso amar os outros, é pecado amar a si mesmo. Considera-se que, se Omo a mim mesmo, não amo mais ninguém, que o amor a si mesmo é a mesma coisa que o egoísmo. Essa ideia está arraigada há muito tempo no pensamento ocidental. Calvino fala do amor a si mesmo como se fosse uma “peste”. Freud fala de amor a si mesmo em termos psiquiátricos, mas seu juízo de valor é igual ao de Calvino. Para ele o amor a si mesmo é a mesma coisa que o narcisismo, é a libido voltando-se para si mesma. O narcisismo é o primeiro estágio do desenvolvimento humano, e a pessoa que, mais adiante na vida, volta a seu estado narcísico é incapaz de amar; nos casos extremos, é insana. Freud considera que o amor é a manifestação da libido, e que a libido é ou voltada para os outros (amor) ou para si mesmo (amor a si mesmo). Amor e amor a si mesmo são, portanto, mutuamente exclusivos no sentido de que quanto mais há de um, menos há do outro. Se o amor a si mesmo é ruim, então a abnegação é virtuosa.

Põe-se a questão: a observação psicológica suporta a tese de que há uma contradição básica entre amor a si e amor aos outros? O amor a si é o mesmo fenômeno que o egoísmo ou trata-se de fenômenos opostos? Além disso, o egoísmo do homem moderno é de fato uma preocupação consigo mesmo enquanto indivíduo, com todas as suas potencialidades intelectuais, emocionais e sensuais? Será que “ele” não se tornou um apêndice de seu papel socioeconômico? O egoísmo é mesmo idêntico ao amor a si ou não seria causado pela falta desse amor?
Antes de iniciarmos a discussão do aspecto psicológico do egoísmo e do amor a si mesmo, precisamos apontar a falácia lógica existente na noção de que o amor aos outros e o amor a si são mutuamente exclusivos. Se é uma virtude amar o próximo como ser humano, deve ser uma virtude – e não um vício – amar a mim mesmo, já que também sou um ser humano. Não há concepção do homem em que eu mesmo não esteja incluído. Uma doutrina que proclame tal exclusão se revela intrinsecamente contraditória. A ideia expressa do “ama o próximo como a ti mesmo” da Bíblia implica que o respeito a si mesmo, o amor e a compreensão por si mesmo não podem ser separados do respeito, do amor e da compreensão por outro indivíduo. O amor por meu próprio eu é inseparavelmente ligado ao amor por qualquer outro ser.

Chegamos agora às premissas psicológicas básicas em que se fundamental as conclusões de nossa argumentação. Em geral, essas premissas são as seguintes: não apenas os outros, mas nós mesmos somos o “objeto” de nossos sentimentos e de nossas atitudes, as atitudes em relação aos outros e a nós mesmos, longe de serem contraditórias, são basicamente conjuntivas. No que concerne ao problema que estamos discutindo, isso significa: o amor aos outros e o amor a nós mesmos não são alternativas. Ao contrário, uma atitude de amor a si mesmo será encontrada em todos os que são capazes de amar os outros. O amor, em princípio, é indivisível no que concerne à conexão entre “objetos” e nosso próprio ser. O amor genuíno é uma expressão de produtividade e supõe cuidado, respeito, responsabilidade e conhecimento. Não é um “afeto” no sentido de ser afetado por alguém, mas um esforço ativo no sentido do crescimento e da felicidade da pessoa amada, arraigado em nossa própria capacidade de amar.

Amar alguém é a realização e a concentração do poder de amar. A afirmação básica contida no amor é dirigida para a pessoa amada como uma encarnação de qualidades essencialmente humanas. O amor a uma pessoa implica o amor ao homem como tal. Essa espécie de “divisão de trabalho”, conforme William James a chama, pela qual uma pessoa ama sua família mas não tem nenhum sentimento para como o “estranho” é indício de uma incapacidade básica de amar. O amor ao homem não é, como se costuma supor, uma abstração que vem depois do amor por uma determinada pessoa, mas é sua premissa, se bem que seja geneticamente adquirida amando-se indivíduos determinados.
Decorre daí que meu eu tem de ser objeto do meu amor tanto quanto outra pessoa. A afirmação da minha vida, da minha felicidade, do meu crescimento, da minha liberdade, arraiga-se na minha capacidade de amar, isto é, no cuidado, no respeito, na responsabilidade e no conhecimento. Se um indivíduo é capaz de amar produtivamente, ele também se ama; se ele só pode amar os outros, é que na verdade não pode amar. Admitindo-se que o amor a si mesmo e aos outros é, em princípio, conjuntivo, como explicaremos o egoísmo, que exclui obviamente qualquer preocupação genuína pelos outros? A pessoa egoísta só se interessa por si mesma, quer tudo para si, não tem prazer em dar, apenas em tomar. Ela vê o mundo exterior unicamente do ponto de vista do que pode dele obter; ela não se interessa pelas necessidades alheias, nem tem consideração pela dignidade e pela integridade delas. Não enxerga nada, além de si mesma; julga todos e tudo do ponto de vista da utilidade que podem ter para si; é basicamente incapaz de amar. Isso acaso não prova que a preocupação pelos outros e a preocupação por si são alternativas inevitáveis? Seria assim, se o egoísmo e o amor a si mesmo fossem idênticos. Mas admitir tal hipótese é uma falácia que levou a muitas conclusões errôneas com relação a nosso problema. Egoísmo e amor a si mesmo, longe de serem idênticos, na verdade são opostos. A pessoa egoísta não se ama muito, ela se ama pouco; na verdade, ela se odeia. Essa falta de carinho e de cuidado por si mesmo, que nada mais é que a expressão da sua falta de produtividade, deixa o egoísta vazio e frustrado. Ele é necessariamente infeliz e tenta ansiosamente arrancar da vida as satisfações que se impede de alcançar. Parece preocupar-se demasiado consigo, mas na verdade apenas faz uma tentativa malsucedida de dissimular e compensar seu fracasso em cuidar de seu eu verdadeiro. Freud considera que o egoísta é um narcisista, como se houvesse retirado seu amor dos outros e voltado todo ele para a sua pessoa. É verdade que as pessoas egoístas são incapazes de amar os outros, mas também não são capazes de amar a si mesmas.

É mais fácil entender o egoísmo comparando-o com a insaciável preocupação com os outros, que encontramos, que encontramos por exemplo, na mãe super-protetora. Embora ela conscientemente acredite ter uma hostilidade profundamente reprimida contra o objeto da sua preocupação. Ela se preocupa em excesso com ele não apenas porque ama muito o filho, mas porque precisa compensar sua falta pura e simples de capacidade de amá-lo.

Essa teoria da  natureza do egoísmo nasceu da experiência psicanalítica com a “abnegação” neurótica, um sintoma de neurose observado em não poucas pessoas que normalmente não se sentem perturbadas por esse sintoma, mas por outros ligados a ele, como a depressão, o cansaço, a incapacidade de trabalhar, o fracasso nos relacionamentos amorosos, e assim por diante. Não apenas essa abnegação não é sentida como um “sintoma”, como costuma ser o traço de caráter redentor de que tanta gente se orgulha. A pessoa “abnegada” não quer nada para si”; ela “vive só para os outros”, orgulha-se de não se considerar importante. Fica intrigada ao constatar que, apesar da sua abnegação, é infeliz, e que seus relacionamentos com os mais próximos dela são insatisfatórios. O trabalho analítico revela que sua abnegação não é algo separado dos outros sintomas que apresenta, mas um deles – na verdade, costuma ser o mais importante de todos; revela que ela está bloqueada em sua capacidade de amar ou de aproveitar o que quer que seja; que está impregnada de hostilidade contra a vida e que por trás da fachada abnegada está escondido um egocentrismo sutil, mas nem por isso menos intenso. Essa pessoa só pode se curar, se sua abnegação também for interpretada como um sintoma dentre outros, de modo que sua falta de produtividade, que está na raiz tanto da abnegação como de seus outros problemas, possa ser reparada.

A natureza da abnegação se torna particularmente patente em seus efeitos sobre os outros, e na maior  parte das vezes, em nossa cultura, no efeito da mãe “abnegada” sobre seus filhos. Ela acredita que, graças à sua abnegação, seus filhos experimentarão o que é ser amado e aprenderão, por sua vez, o que significa amar. No entanto, o efeito da sua abnegação não corresponde de maneira nenhuma às suas expectativas. Os filhos não denotam a felicidade das pessoas convencidas de que são amadas; são ansiosos, tensos, temem a desaprovação da mãe e anseiam por corresponder às suas expectativas. Normalmente, todos eles são afetados pela hostilidade oculta da mãe contra a vida, que eles muito mais sentem do que reconhecem claramente, e acabam eles próprios imbuídos dela. Globalmente, os efeitos que a mãe “abnegada” produz sobre seus filhos não é muito diferente dos da mãe egoísta; na verdade, costumam ser piores, porque a abnegação da mãe impede que os filhos a critiquem. Eles se vêem na obrigação de não desapontá-la; são ensinados, sob a máscara da virtude, a não gostar da vida. Se você tiver a oportunidade de estudar o efeito de uma mãe dotada de verdadeiro amor a si, poderá ver que nada conduz tão bem o filho à experiência do que é o amor, a alegria e a felicidade, do que ser amado por uma mãe que se ama.


A melhor maneira de resumir essas idéias de amor a si mesmo é citar Mestre Eckhart sobre esse ponto: “Se você ama a si mesmo, você ama todos os outros tanto quanto a si mesmo. Se você ama outra pessoa menos do que se ama, na verdade não conseguirá amar a si mesmo; mas, se você amar a todos, inclusive você, igualmente, então amará todos eles  como se fossem uma só pessoa, e essa pessoa é ao mesmo tempo Deus e homem. É assim uma grande e virtuosa pessoa que, amando-se, ama igualmente todos os outros”.

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