O CORPO DE DOR (Anexo 1)
No caso da maioria das pessoas, quase todos os pensamentos
costumam ser involuntários, automáticos e repetitivos. Não são mais do que uma
espécie de estática mental e não satisfazem nenhum propósito verdadeiro. Num
sentido estrito, não pensamos – o pensamento acontece em nós. A afirmação “Eu
penso” implica volição. Ou seja, podemos nos pronunciar sobre o assunto,
podemos fazer uma escolha. Mas isso ainda não é percebido pela maior parte das
pessoas. “Eu penso” é uma afirmação simplesmente tão falsa quanto “Eu faço a
digestão” ou “eu faço meu sangue circular”. A digestão acontece, a circulação
acontece, o pensamento acontece.
A voz na nossa cabeça tem vida própria. A maioria de nós
está à mercê dela; as pessoas vivem possuídas pelo pensamento, pela mente. E,
uma vez que a mente é condicionada pelo passado, então somos forçados a
reinterpretá-lo sem parar. O termo oriental para isso é carma. Quando nos
identificamos com essa voz, ignoramos isso. Se soubéssemos, não seríamos mais
possuídos por ela, porque a possessão só acontece de verdade quando confundimos
a entidade que nos domina com quem nós somos, isto é, quando nos tornamos essa
entidade.
Ao longo de milhares de anos, a mente vem intensificando seu
domínio sobre a humanidade, que deixou de ser capaz de reconhecer a entidade
que se apossa de nós como o “não-eu”. Por causa dessa completa identificação
com a mente, uma falsa percepção do eu passa a existir – o ego. A densidade
dele depende do grau em que nós – a consciência – nos identificamos com a
mente, com o pensamento. Pensar não é mais do que um minúsculo aspecto da
totalidade da consciência, de quem somos.
O grau de identificação com a mente difere de indivíduo para
indivíduo. Algumas pessoas desfrutam de períodos em que se encontram libertas
do domínio da mente, ainda que brevemente. A paz, a alegria e o ânimo que elas
experimentam nesses momentos fazem a vida valer a pena. Essas também são as
ocasiões em que a criatividade, o amor e a compaixão se manifestam. Outras pessoas
se mantêm presas ao estado egóico de modo contínuo. Permanecem alienadas de si
mesmas, assim como dos demais e do mundo ao redor. Quando as observamos,
conseguimos ver a tensão na sua face, talvez a testa franzida ou um olhar vago
e distante. A maior parte da sua atenção está sendo absorvida pelo pensamento,
por isso não nos vêem nem nos escutam. Elas não estão presentes em nenhuma
situação – sua atenção está ou no passado ou no futuro, que, é claro, são
formas de pensamento que existem apenas na mente. Ou, se estabelecem um
relacionamento conosco, fazem isso por meio de algum tipo de papel que
interpretam e, assim, não são elas mesmas. As pessoas, em sua maioria, vivem
alienadas de quem elas são. Às vezes esse estado chega a tal ponto que a maneira como se
comportam e se relacionam é reconhecida como “falsa” por quase todo mundo, a
não ser por aqueles que também são falsos e igualmente alienados de quem são.
Alienação quer dizer que não nos sentimos à vontade em
nenhuma situação, em nenhum lugar nem com ninguém, nem mesmo conosco. Estamos
sempre tentando nos sentir “em casa”, mas isso nunca acontece. Alguns dos
maiores escritores do século XX, como Franz Kafka, Albert Camus, T. S. Eliot e
James Joyce, não só reconhecem a alienação como o dilema universal da
existência humana como é provável que a tenha sentido em si mesmos de modo
profundo e, assim, foram capazes de expressá-la excepcionalmente em suas obras.
Eles não ofereceram uma solução. Sua contribuição foi nos proporcionar uma
reflexão sobre essa dificuldade humana, para que pudéssemos vê-la com mais
clareza. Ter uma visão mais nítida de uma situação complicada em que nos
encontramos é o primeiro passo no sentido de superá-la.
Nenhum comentário:
Postar um comentário