O CÂNCER COMO CARICATURA DE NOSSA REALIDADE
Relatos sobre pessoas com câncer que foram “inesperadamente
ceifados da vida pela pérfida doença na flor da idade, no auge de suas
carreiras e de suas responsabilidades” parecem contradizê-lo diametralmente.
Quando se observam as histórias de vida que estão ocultas por trás disso, tal
forma de falar reflete uma assombrosa cegueira para temas sombrios. Um olhar
mais atento revela que o acontecimento não se deu de forma assim tão repentina
e sem prévios sinais de alarme. Justamente a falta de qualquer reação corporal
e qualquer sintoma é um sinal de “normopatia”.
A ênfase nas grandes responsabilidades, quando examinada com
precisão, revela que o afetado cumpria com os seus deveres sem se queixar.
Responsabilidade, ao contrário, significa a capacidade de dar uma resposta às
necessidades da vida. Mas os pacientes potenciais de câncer não possuem essa
capacidade. Como eles não podem impor limites e mal podem dizer não, eles
facilmente se deixam sobrecarregar com obrigações. Por outro lado, eles se
assumem de bom grado, para dar um sentido externo a suas vidas – na falta de um
sentido interno. Os logros e êxitos obtidos são portanto bons disfarces – por
trás dos quais pululam sentimentos de falta de sentido e depressões.
A psiquiatria conhece como depressão larval aquelas
depressões por trás das quais se ocultam sintomas físicos. Por ocasião dos
acontecimento cancerígeno, não é raro encontrar depressões ocultas atrás do
êxito externo. Aqui, a larva é tida em tão alta consideração pela sociedade que
não se pode nem mesmo pensar em um sintoma. Sob muitos pontos de vista, a
típica personalidade cancerígena é considerada modelar. Ela é valente e não
agressiva, quieta e paciente, atua de maneira equilibrada e tão simpática
porque não é egoísta, além disso é desinteressada e solícita, pontual e
metódica – não lhe falta praticamente nenhum dos ideais desta sociedade, e
portanto não é de admirar que esteja intimamente ligada a esse sintoma. O êxito
social, apesar ou justamente devido à rigidez interna, pertence ao âmbito dos
típicos ideais secundários, mas se ajusta perfeitamente à imagem ideal do homem
moderno. Tampouco se pode negar que o câncer obtém um êxito impressionante no
plano superficial. Praticamente nenhuma outra doença pode subjugar um organismo
e ajustá-lo a seus próprios desígnios tão rapidamente, nenhuma é tão tenaz e
resistente às medidas defensivas e terapêuticas.
Não é de admirar que tenhamos tanto medo do câncer, já que
nenhum outro sintoma está mais equipado para nos mostrar o espelho. O câncer
personifica a transformação dos dignos ideais secundários no pólo oposto, o
princípio do ego total. A caricatura física desse ideal costuma ser levada a
mal, como toda caricatura. Mas sempre que tal ocorre como uma caricatura desse
destino, isso não acontece porque ela é falda, ao contrário: ela se ajusta a
ele e até mesmo o supera.
("A Doença Como Linguagem da Alma" - Dr. Rudiger Dahlke)
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